SEJAM BEM VINDOS A ESTE BLOG

Nota Prévia :

Este Blog destina-se exclusivamente à divulgação de trabalhos escritos por mim para meu prazer e daqueles que eventualmente estivessem interessados na sua leitura.

Felizmente, foram muitos os que se me dirigiram a pedir que divulgasse alguns dos meus trabalhos, especialmente os que mais me marcaram ao longo da minha vida, daí ter feito uma escolha selectiva de entre todos eles, muitos ficando de fora, naturalmente .

Foi por esse motivo que surgiu este Blog .

Muitos desses trabalhos já haviam sido publicados em periódicos e revistas da especialidade e não só, muitos deles além fronteiras ( EUA e BRASIL ), e alguns chegaram mesmo a ser galardoados em Concursos de Contos e Poesias e diversos Jogos Florais .

À medida em que forem inseridos neste Blog, tentarei informar quais os já anteriormente publicados, onde e quando e se tiverem sido galardoados, quais os prémios que lhes foram atribuidos e quais as Organizações envolvidas .

Espero que a memória não me falhe e os meus apontamentos não estejam incompletos.

Ericeira, 20 de Janeiro de 2011

Carlos Jorge Ivo da Silva

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

AS AVELÃS


Seriam umas cinco horas da tarde. O Jardim do Cerco já estava fechado a essa hora .
Tínhamos saído da Escola Velha --- Escola Conde de Ferreira --- e lá fomos até ao Canal .
Éramos mais ou menos uns oito ou nove gaiatos ou talvez mais da mesma idade ou aproximada, rondando dos sete aos dez anos, entre rapazes e raparigas, que sempre andávamos juntos .
Dirigimo-nos pacatamente e sem ruído --- caso extremamente raro, diga-se de passagem --- até ao Jardim da Alameda, não fossem os do Canal ou os do Quartel --- dois dos muitos grupos rivais de miúdos do meu tempo existentes em Mafra ---darem pela nossa presença e então lá teríamos --- como sempre, aliás --- guerra rija e adeus avelãs, e por uma muito íngreme rampa subimos a encosta da Carreira de Tiro Pequena até à Quinta do Jorge Pinhão, que atravessámos num ápice pelo meio de centenas de torrões de terra lavrada até nos encontrar-mos à beira do esfarrapado --- nesse tempo --- murro do Jardim do Cerco .
Aí chegados, com todas as precavidas cautelas, saltamos para dentro do Jardim não sem antes vermos se o Jorge Pinhão estava por ali como era seu costume, pois se assim fosse não poderíamos regressar pelo mesmo caminho, como era natural .
Ninguém gosta que se passe por uma terra acabada de semear e nós sabiamo-lo bem, na própria pele, dadas as muitas vezes que fomos corridos a sete pés e a umas tantas pedradas, mais para assustar do que para acertar. Mas lá entrámos sem novidades de maior com mais ou menos sustos pelo caminho .
Tanto quanto me recordo, uma das obrigações do grupo era andar em fila indiana, reflexo de muitos dos filmes, que o Sr. Paulino nos deixava ver à borla no Cinema e que tanto nos entusiasmava, especialmente os de Índios e Cow-Boys ou os de Capa e Espada .
E assim fomos andando pelo Jardim dentro sempre à coca do Sr. Marques. O local aonde íamos ficava próximo da casa do guarda bem próxima do Parque das Merendas e não era nada bom se nos apanhasse " com a boca na botija ", pois além de uns bons " sopapos ", podia-nos entregar à policia, naquela época chefiada pelo Chefe Sereno, que tinha fama de não ser muito suave para com a pequenada --- lá tinha as suas razões, que hoje reconheço serem de sobra ---. Nunca me constou, porém, que alguma vez tivesse batido em algum de nós, mas fechava " o pessoal " no calabouço do Convento e fazia--se esquecido durante algumas horas --- embora avisasse as famílias, que o apoiavam nos seus " actos de repressão " aos petizes, pois reconheço hoje o quanto era difícil ao Chefe Sereno " ser prior de uma freguesia daquelas " .
Lá chegámos à álea, que demarcava a área onde estavam plantadas as avelaneiras, embrenhando-nos na mata muito vagarosamente e sem ruído, começando à procura das tão desejadas avelãs, que mal se viam, dada a escuridão que ali se fazia sentir. Mas, em pouco mais de quinze minutos, cada um encheu os bolsos como podia; e porque os bolsos de alguns estavam rotos, serviram os amarfanhados lenços para o mesmo serviço, atados no final de cheios em cruzado de bico a bico --- os bolsos da pequenada andavam quase sempre rotos pois serviam para guardar as nossas armas de guerra, que eram as fisgas e meia dúzia de calhaus, que acabavam sempre por os furar. Apesar desse grande inconveniente, sem elas é que nós não andávamos, embora soubéssemos, que em nossa casa isso daria lugar por vezes a umas boas palmadas --- .
Satisfeitos, regressámos pelo mesmo caminho, mas qual não foi o nosso espanto quando, ao tentarmos saltar o muro, vimos o Jorge Pinhão no lado de lá, com ar de quem estava à nossa espera. A sete pés reentrámos na mata e preparámos o nosso plano de resolução do problema, o nosso " plano de defesa ", como lhe chamávamos. Como iríamos nós voltar a casa, se o caminho estava " cortado " ?
Resolvemos entrar pela " Mina d'água " e sair na Tapada. Daí seria, decerto, mais fácil voltar à vila .
Atravessámos o Jardim do Cerco pela álea, que passa pelo Portão do meu avô --- ainda hoje conhecido pelo Portão Júlio Ivo, por ter sido ele a mandá-lo construir --- e sempre junto ao muro, que separa o Jardim do Cerco da Tapada, chegámos sem problemas à Mina, junto ao Lago Grande .
Entrados que fomos, descido o pequeno lance de degraus e dados mais alguns passos no interior do túnel, sentimos a porta fechar-se atrás de nós com grande estardalhaço e no exterior a voz do Sr. Marques, o Chefe dos Guardas, a rir alto e em bom som, dizendo-nos : " Meus malandros . . .
Sempre quero ver como é que vocês saem daí. Quando saírem não esperam pela demora. Vocês vão ver o que vos acontece, meus malandrões de uma figa ! " e vociferava a bom vociferar, mas sempre a rir como era seu costume .
Não havia dúvida de que tínhamos sido descobertos logo à nossa entrada ao saltarmos o muro para o Jardim, mas o Sr. Marques queria ver até que ponto éramos capazes de ir, e por isso nada fez até àquele momento, como quando muito mais tarde me explicou ao referirmo-nos em animada conversa ao assunto .
Dada a escuridão no interior do túnel, não podíamos ver as caras uns dos outros, mas não deviam ser muito bonitas, se de medo, de espanto ou de raiva. Falando baixinho deliberámos ir sair ao gradeamento, que ficava no final do túnel e aí fomos nós, sempre à espera de que algum morcego resolvesse vir de encontro às nossas cabeças. Porém. dessa vez isso não sucedeu, embora fosse frequente, sempre que lá íamos dentro .
Chegámos ao gradeamento, após andarmos aos encontrões por não termos levado " pilhas " --- lanternas --- para alumiar o caminho, passámos pelas grades largas do final do túnel e num ápice encontrámo-nos dentro da Tapada .
Mas, lá nos surgiu outro problema. Como sair da Tapada sem ser pelo Portão da Remonta ? Decerto, o Sr. Marques já teria avisado os Remontistas e os Guardas da Tapada e iríamos ter novos problemas com eles, porque não nos era permitido andar dentro da Tapada àquelas horas .
Tudo se resolve na vida e tomámos a decisão de ir saltar o muro da Tapada a cerca de dois quilómetros a norte, perto do Tanque dos Frades, embora já se começasse a fazer noite .
Atravessámos a zona das " Lagoas " e quando avistámos os guardas da Tapada, que vinham à nossa procura, correndo lá fomos através da mata e dos pântanos, que conhecíamos a palmo, chegando em poucos minutos ao Tanque dos Frades, que tivemos que rodear ao longo de uma área descoberta chamada a Horta dos Frades, embora com a nossa incursão pelos pântanos tivéssemos ganho mais de vinte minutos, o tempo que os guardas levariam a dar a volta para chegar até nós .
Atravessar descampados era, na verdade, o pior que nos podia acontecer, mas conseguimos fazê-lo sem termos sido detectados até darmos com uma das brechas do muro, por onde tantas vezes passávamos para irmos tomar banho ao Tanque --- e foram tantas as vezes, que lhes perdi a conta ---à revelia dos guardas, e saltámos para o exterior dando os nossos gritos de alívio à boa maneira " Tarzaniana ". Felizmente, cá fora não havia ninguém à nossa espera para " nos tratar da saúde " e lá fomos estrada acima até ao centro da vila, onde cada um de nós seguiu a caminho de sua casa para jantar --- ou talvez não, por ser um pouco tarde, e quando chegávamos tarde a casa, por vezes não havia jantar para ninguém, por castigo . . . bem merecido, diga-se de passagem, mas nunca suficiente --- .
Finalmente, tínhamos conseguido ir às avelãs sem termos sido apanhados, e lá combinámos outras aventuras para o dia seguinte .
Seriam como esta algumas das muitas peripécias por que haveríamos de passar ao longo da nossa juventude alegre e não menos atribulada, mas que provocou em todos nós um fortíssimo gosto pela vida, que ainda hoje felizmente perdura .

Lisboa, 1994

MANIFESTO AOS DESPREVENIDOS ( EM ÉPOCA DE CARNAVAL )

Pequena Nota Explicativa :

O documento que se segue deverá ser distribuído pelos trabalhadores TAP, aquando da realização de uma vigília no corredor fronteiro ao Departamento de Finanças e Vencimentos.
Os trabalhadores que quiserem aderir deverão vestir " jeans " e calçar sapatilhas, levando consigo uma pequena malga vazia e algumas sandes, utilizando dois tipos de pão diferentes .
Não deverá ser feita algazarra, mas antes pelo contrário, os trabalhadores envolvidos nesta vigília deverão manter-se sentados no chão e em silêncio .
Somente um trabalhador deverá estar levantado a fim de poder dar indicações a quem as solicitar ao mesmo tempo que deverá distribuir este manifesto .
Caso haja proibição desta manifestação pacifica, os trabalhadores deverão reunir-se no exterior da área TAP, na relva fronteira à Custódia, a norte do portão da ANA / EP, mas sempre em silêncio .


MANIFESTO AOS DESPREVENIDOS

Concidadãos

Nós não estamos em greve nenhuma .
Manifestar não é propriamente fazer festas com as mãos, mas sim assumir posições, que podem ser consideradas aborrecidas, ingratas, intolerantes ou insubmissas, mesmo sem o beneplácito régio ou qualquer outra régia dissertação acerca de flores .
Quando alguém se manifesta é porque existe, pois caso contrário nunca o poderia fazer, desde que já tivesse batido a bota .
O principio fundamental de um manifestante é sempre a esperança que ele tem, que alguém ligue ao que ele diz ou ao que ele faz, mesmo que a acção ou a palavra signifiquem no final, que não valeu a pena socorrer-se de tal estratagema --- não queremos dizer com isto, que tenhamos atirado fora a clara e a galaza para ficarmos só com a amarelinha --- .
Resolvemos sentarmo-nos quietinhos, sem maçar ninguém nem amassar o que ou quem quer que seja, numa atitude de sossego e reflexão enquanto esperamos .
Temos todos uma única razão, que nos levou a ponderar esta nossa actuação posicional, que é esperar pelo nosso mui querido ordenado .
Sabemos que estamos a meio do mês, mas o que querem ?
Somos assim .
Temos consciência de que sem dinheiro ninguém vive. É um hábito chato, mas . . . Paciência . . . força das vicissitudes humanas de nada fazerem sem que tenham uma retribuição .
Não estamos contra a Entidade Patronal. Isso é que não ! ! ! .
Não ! ! ! Não ! ! !
Por quem sois, caríssimos concidadãos. Longe disso.
Nada de más interpretações ou desgastantes quebras cabeças numa atitude tão simples como a nossa. A Companhia não nos deve um tostão. Nós trabalhamos e ela paga-nos no dia que nos marcou para recebermos. O que não temos culpa, é do dinheiro não chegar nem para as primeiras necessidades nem sequer para as mínimas necessidades fisiológicas, ou seja, nem para limpar o . . .
Claro que a culpa não é da Companhia, como já o afirmámos. Não imputamos culpas a ninguém. O que precisamos é de dinheiro que nos dê forças para viver. Até lá, vamos esperando aqui até que chegue o fim do mês .
Mas . . . e os outros ? Perguntais vós com toda a razão . . . e nós dizemos muito simplesmente, que se venham sentar aqui ao nosso lado e esperem também até ao fim do mês, de forma a manifestarem a sua solidariedade com eles mesmos .
E se alguém perguntar o que fazemos, nós dizemos, que estamos esperando que se sentem junto a nós, na mesma atitude de esperança e reflexão .
Como vêem, é simples. Não tem nada de especial estarmos aqui sentados, e quem pensar o contrário e não estiver de acordo em se sentar ao nosso lado, é porque não tem o poder de encache, que nós temos e o ordenado lhe chega. Isso permitir-nos-á concluir, que afinal somos nós que estamos errados, e neste país ainda há quem tenha possibilidades de criar no banco contas de poupança e [ ou ] a prazo, que mais dia menos dia deixarão de existir, porque são a um prazo muito limitado, naturalmente .
Cá os esperamos, caríssimos concidadãos, quanto mais não seja para um " tète-à-tète " numa malguinha de sopa ou numa sandes de pãozinho mais ou menos branco com pãozinho de segunda .
Estão todos convidados e mesmo os que agora não aceitarem o nosso convite amável e terno, dentro em breve teremos o grato prazer da vossa companhia, quer queiram quer não, pois sereis vós próprios a convidar-nos .

Bem hajam pela vossa atenção

OS RESIGNADISSIMOS

Lisboa, Carnaval de 1991

( Este texto foi preparado para ser distribuído durante as festas de Carnaval na TAP em 1991, embora nunca tenha efectivamente sido distribuído por razões que se prenderam com uma certa desmobilização do pessoal envolvido. Havia, é certo, muita gente que se encontrava interessada em que o assunto fosse passado à prática. O vislumbre de um possível envolvimento político de várias organizações levou a que o projecto fosse posto de lado, pois tratava-se de uma chamada de atenção ou simplesmente de uma tentativa de alteração da opinião pública e não da possibilidade de dar de bandeja a organizações politicas, fossem elas quais fossem, o ensejo de se sobrejogarem com o seu respectivo aproveitamento político )

O JOGO DA BOLA

Tinha os meus seis ou sete anos de idade .
Meus pais iam para a Ericeira passar um mesinho de veraneio. Estávamos em pleno Agosto. Como sempre, tanto eu como os meus irmãos levantámo-nos cedinho e descendo as escadas quase à vertical da casa da Dª. Germana, mesmo em frente ao " Jogo da Bola " e sobre a loja do Sr. Fino, num ápice ficámos sob as copas das vetustas árvores, que tão maravilhosamente engalanavam a empedrada área fronteira do Café Arcada .
Carregados de material para a pesca aos cabozes --- não eram mais do que uns sacos de plástico, dos primeiros que eu vi, e umas velhas facas, que a minha mãe sempre punha à nossa disposição nessas alturas ---, de uma pêra e vinte e cinco tostões para cada um, lá fomos pela rua Eduardo Burnay até à sua confluência com a Calçada da Baleia, que descemos meia a andar meia a correr .
Pelo ar corria um forte aroma característico do iodo, que nos entrava pelas narinas saborosamente, desobstruindo as fossas nasais, felizmente ainda pouco poluídas pelo ambiente .
Com facilidade relativa chegamos num ápice pela calçada norte à Praia do Sul, onde a " Banheirinha " se nos deparou com toda a sua beleza .
Dos lados do Hotel Turismo em duas pequenas prainhas alguns banhistas sentiam a frescura das leves ondas do mar, que se enrolavam na rebentação ali mesmo ao pé do esqueleto de uma antiga e pequena prancha de saltos, da qual ainda se podiam ver dois ferros já corroídos pelo mar, onde nos segurávamos para subir ao pequeno rochedo, que utilizávamos na falta da prancha, para saltarmos em mergulho na límpida e esverdeada água salina .
Do lado de cá, a extensa Praia do Sul convidava-nos a percorrê-la até ao seu fundo. Rochas, ainda não as havia à mostra como se vêem hoje. A areia branquinha polvilhava toda a praia, só havendo aqui ou ali um ou outro resto de alga, que o mar no seu vai e vem continuo atirava mansamente à praia durante as épocas de verão. Escusado será dizer, que as marés vivas tão características dos fins de Agosto ainda se não faziam sentir, dando ao ar a sua graça natural --- felizmente a praia ainda não era revestida a latas de coca-cola ou outras coisas quejandas --- .
Sandálias nas mãos, pequenos bonés brancos e azuis à marinheiro enterrados nas cabeças --- que minha mãe bastante cautelosa nos pedia que sempre mantivéssemos postos, não fosse o aparentemente tímido sol criar-nos problemas de insolação, como já em tempos me havia acontecido, para grande preocupação de toda a família ---, camisetas brancas de alças sobre calções de caqui esverdeado, toa-lhas multicolores sobre os ombros e os pés descalços marcando a areia molhada da borda da água formavam o conjunto dos três pequenos encaminhando-se para as rochas, que formavam o " Muro Vermelho ", na ponta sul da praia .
À medida que íamos caminhando à beira mar, ficavam para trás as duas filas de barracas feitas de grosso linho decorado com tiras azuis e brancas e uma de toldos fabricados com o mesmo pano, assentes sobre varões de madeira enterrados na areia. Perto desses prefabricados protectores solares lá estavam os banhistas apanhando o matinal sol, transformando os seus brancos corpos em negros tições ou dando às peles o colorido das lagostas e por vezes um ardor natural de queimaduras acidentais, talvez sob os olhares atentos do Gramanha ou do Zé da Lúcia e do Simão, os banheiros mais conhecidos da praia .
Alcançando o nosso destino, aí tirámos os " caquis ", que deixámos em monte juntamente com as sandálias, os bonés, as camisetas e as toalhas sobre areia menos húmida, e em " modernos " --- para a época --- calções pretos, onde um cinto branco dava um certo ar de realce e de beleza, atirámo-nos pela água dentro, nadando só com uma mão e com o referido saco na outra. Chegados junto às escuras e vulcânicas rochas, emaranhados montículos de verduras e castanhos de tons variados, lapas ou mexilhões e, por aqui e por ali, pequenos enclaves cobertos de burriés e ouriços, que picavam com quantos picos tinham quem inadvertidamente lhes tocasse, faziam-se observar numa amalgama de vida sob intensa luz naquela manhã de Agosto, salpicados a todo o momento pela água salgada, aconchegando levemente os rochedos escultoricamente plurirecortados .
O céu azul toldava as nossas cabeças, enquanto pequenas e distraídas, porque bem alimentadas, gaivotas pairavam no ar como se fossem papagaios de papel, aos quais de tempos a tempos damos um pouco de linha para puxarmos depois, provocando-lhes idas e retrocessos em encantadore movimentos, que tanta alegria provocam nos mais pequeninos e aos grandes não deixam de causar uma certa nostalgia ao lembrarem-se dos seus tempos de meninos .
A primeira coisa a fazer foi procurar nas brechas dos ouriçados pedregulhos pequenos montes de areia, transformados num género de cimento e cobertos de pequeníssimos furos, bocas de acesso a canais por onde a água do mar entrava e saía sem os destruir. Era neles que iríamos encontrar os cabozes negros e castanho-avermelhados, que quando em grandes quantidades servem para fazer uma belíssima caldeirada tão do agrado dos amantes do mar e da sua fauna .
Esgravato aqui, perfuração ali com a ajuda de um seixo rolado, para dar mais ímpeto ao movimento compressor, lá púnhamos a descoberto a loca de um ou outro caboz, que pouco depois se debatia entre os nossos dedos até entrar na boca do saquito cheio de água, para manter vivos os peixinhos o mais tempo possível .
Quando aparecia uma lapa corpulenta, nem essa escapava ao seu destino, logo mergulhando no saco num abrir e fechar de olhos ou um mexilhão um bocadinho maior do que o normal. É certo, que algumas vezes caiam para dentro de água, mas para que não escapassem, de olhos bem abertos e boca do saco fechada mergulhávamos para os ir buscar, a fim de não ser dado por mal empregue o tempo gasto a levantá-los da rocha. O mesmo acontecia com os búzios, as conchinhas, os grandes burriés e os mais corpulentos ouriços, que ainda nessa época pululavam em grande quantidade nos mais variados recantos da Praia do Sul .
Sacos cheios, já bastamente cansados e após troca de sinais entre nós, como que a assentarmos que já chegava, lá voltámos à areia onde avaliámos então a nossa pescaria. Não fora má de todo, confessemos .
Enxugámo-nos com as toalhas, pusemos as camisetas brancas e os bonés de marinheiro e regressámos com o mesmo andamento, que tínhamos levado, trazendo às costas o resto da tralha até à zona da " Banheirinha ", onde nos voltámos a despir, determinados a dar umas boas braçadas --- desta vez não levamos as nossas bóias feitas de câmaras de ar, que foram pertença das rodas de um " Austin 10 " cor de café com leite, que o meu pai nos tinha arranjado por já não servirem --- nas águas muito pouco profundas daquela piscina natural, limitada a norte pelas duas prainhas do Hotel, pelo sul por dois grandes rochedos, pelo oeste por um entrelaçado de pequenas rochas, que formavam uma barreira separadora do mar profundo, e pelo leste pela finíssima e agradável areia da praia, que separava o mar das escarpadas falésias sustentadoras dos " Jardins do Burnay ", onde tantas vezes íamos brincar, subindo uma majestosa escadaria toda encantadoramente ornamentada de pequenas conchas e pedrinhas, que lhe dava uma beleza impressionante --- que pena estarem hoje esses jardins totalmente destruídos não só pelo tempo, mas também pelos homens num total e desprezível abandono, numa atitude de falso modernismo --- .
Estivemos algumas horas dentro de água e após termos comido as pêras reservadas para essa ocasião esperámos a chegada da mulher dos bolos --- talvez a Dona Leontina ---, que toda vestida de branco com uma caixa pintada com a mesma cor à cabeça apregoava bolos bem fresquinhos, especialmente os " pastéis de nata " e os " fofos " --- pão de ló recheado ---, que a fábrica do Sr. João da Lindinha sempre produzia e era o gáudio de todos os veraneantes na Ericeira em época balnear. Só mais tarde começaram a aparecer gelados à venda. Ainda me recordo de uma maquineta feita com uma espécie de cilha em madeira com fundo fixo e tampa móvel furada ao centro, com paredes duplas, entre as quais se metia gelo, onde um eixo central com duas pás estava ligado a uma manivela saída do furo da tampa, que manualmente se fazia rodar dentro de uma lata com uma mistura inicialmente liquida à base de chocolate ou baunilha e leite e se tornaria, à custa de muito esforço, como produto acabado, num magnifico gelado. Custavam os gelados nessa altura cinco ou dez tostões conforme o tamanho e eram francamente saborosos, note-se, e menos prejudiciais à saúde do que os de hoje .
Acabada a banhoca de mar, lá vínhamos espavoridos de fome calçada acima com os sacos às costas, admirando mesmo que levemente os interessantíssimos cactos de piteira e chorões vermelhos ou amarelos plantados nas bermas .
Chegados a casa, lá Ía toda a pescaria para dentro de um alguidar, onde por qualidades era separada e as partes destinadas à lancharada eram imediatamente preparadas. A minha mãe achava sempre uma certa piada a essas coisas, preparando-nos deliciosos petiscos com o que apanhávamos, desde a dita caldeirada até ao arroz de lapas, que após uma pequena fervura nos entretínhamos a tirar o fio de areia, que têm sempre no seu interior, antes de serem misturadas com o arroz. Os ouriços eram cozidos e o seu coralífero interior era guardado para o final do repasto juntamente com os burriés e os pequenos mexilhões --- que nos não aventurávamos a ir buscar dos grandes, pois o mar não era para brincadeiras e estavam longe ---. Eram petiscos " de se lhe tirar o chapéu " --- e aquele aroma sempre delicioso do iodo ficava a pairar pelas divisões da casa numa demonstração do apetitoso desejo de quem o sentia --- .
Abancados à mesa da sala de jantar virada para o Jogo da Bola comemos o almoço, que nos foi posto no prato após um excelente banho de chuveiro com água doce. Depois . . . uma sestazinha obrigatória e reconfortante .
Lá para a tarde saímos a brincar no Jogo da Bola, o centro da " reunião social " de toda a criançada veraneante --- e aí grandes amizades se criaram para toda a vida ---. Por volta das cinco horas da tarde lá reentrámos em casa com mais um ou dois amigos, para petiscar a nossa pescaria --- serviam muitas vezes estes petiscos de jantar antecipado ---. Depois, ainda não se fazia sentir o lusco-fusco da tarde amena, lá voltávamos nós para o Jogo da Bola, onde a " Cabra Cega ", o " Mata " ou os " Cinco Cantinhos " e a “ Malhadinha " --- que se joga com uma pedra e riscos no chão feitos com giz ou pedaços de calcário, formando quadrados sobre os quais se saltava ao " cochinho " e lhe chamam hoje a " Macaca " ou a " Sirumba " --- faziam as nossas delicias juntamente com as rodinhas, que sempre se dançavam, como o " Giroflé ", a " Loja do Mestre André " ou a " Machadinha " .
Caía, então, o sol a ocidente e uma infinidade de bandos de pardais vinha acoitar-se nas copas das árvores num ensurdecedor chilreio. O barulho das crianças misturava-se com o das aves numa perfeita simbiose, enquanto os mais adultos sentados na esplanada do " Café Salvador " protegiam de relance a sua pequenada saboreando ao mesmo tempo o seu capilé fresquinho, que na época estava muito na moda, ou comiam no João da Lindinha --- " Casa das Cavacas " --- umas saborosas e açucaradas cavacas, que punham francamente em causa a primazia social das tão propaladas cavacas das Caldas da Rainha. Alguns de entre os mais velhos iam para a Sala de Jogos situada no andar superior do Café Arcada jogar ténis de mesa --- ping-pong --- ou entreter-se nas " Slot-Machines " --- cada puxadela na alavanca era cinco tostões, mas às vezes dava " Jack-Pot " e podia-se então ir brincar junto à gaiola de encantadoras aves canoras ou ainda andar de patins no " Parque de Santa Marta ", cuja receita de entrada sempre foi paga para manutenção e asseio daquela área de lazer e
descanso espiritual --- ou Ía para os Cafés " Salvador " e " Morais " jogar bilhar --- por curiosidade, foi no primeiro andar do Café " Salvador ", que aprendi a jogar bilhar com uma mocinha um pouco mais velha do que eu e que jogava brilhantemente. Pelo menos foi com essa ideia que fiquei desde esse tempo de criança ---. Os adultos do sexo masculino, esses, entretinham-se em Jogos de " Canasta ", " King " ou " Bridge " em casas particulares ou na adega do Café Morais, ou nas petiscadas pelas diversas " tascas " da Ericeira onde as navalhinhas e os camarões pequeninos a par de uns queijinhos saloios regados com um óptimo e afamado " tintol regional tipo carrascão " --- tasca que não tivesse bom tintol estava sempre vazia e não vendia o vinho que tinha --- faziam " papinho " a intermináveis conversas de assuntos os mais variados, especialmente na antiga " Parreirinha ", no " Caetano ", no " Afonso ", na " Andorinha ", no " Jusué ", no " Alberto Ferrador ", no " Xico Peidas " ou no " Zé de Barros " --- perdoem-me se me esqueci de outros, mas era muito pequeno e não as frequentava, a não ser a " Parreirinha ", onde o meu pai me levava com os meus irmãos a comer uma sandezinha de queijo saloio e meio copinho muito pequenino de vinho tinto com gasosa, o que nos dava um prazer imenso, pois nos fazia sentir adultos entre adultos, ao participar-mos em reuniões, que só a eles estavam reservadas, como era natural --- .
Mas as tardes sempre acabavam no Jogo da Bola, onde a Banda da Ericeira por vezes tocava ou se fazia uma " Quermesse " de apoio à Santa Casa da Misericórdia. Dessas Quermesses tenho belas recordações, pois me entretinham muito e aos petizes do meu tempo, que andavam à roda dos balcões a jogar à " Apanhada " ou se entretiam a admirar as peças expostas, que saíam àqueles que lá compravam as rifas de papeis multicolores muito enroladinhos e dobrados a meio em cestinhos de vime tradicionais. Ora umas panelas, uma lata de conserva, um prato, um paliteiro de louça, um lenço de assoar, um jarro ora qualquer outra " bugiganga " era motivo de parodial galhofa entre os compradores de rifinhas e as meninas e senhoras, que sempre as transportavam nos ditos cestinhos .
Noutras alturas, grandes grupos de rapazes e raparigas subiam passeando a rua Eduardo Burnay até à " Sala de Visitas " num passeio cheio de alegria, cantando e saltando, mas sem o sentido actual da vontade de destruir, que os nossos jovens de hoje teimam infelizmente em fazer prevalecer sob o olhar apático e por vezes demasiado condescendente das autoridades. A meio desses passeios parava-se para admirar o " Galeão ", um dos mais belos restaurantes e sala de baile, que tive o prazer de ver até hoje por estas redondezas. Não quero dizer que actualmente o restaurante " César " não tenha condições idênticas às do " Galeão " daquela época, mas os tempos eram outros. Nele se faziam os bailes de Carnaval ou Passagens de Ano magníficos. Eram sempre abrilhantados por excelentes orquestras compostas por músicos divinais, não havendo horas para parar, pois os próprios músicos, porque tocavam mais por amor à arte que ao vencimento que auferiam, se encarregavam de que assim acontecesse, sob a batuta magistral do insigne Mafrense Francisco Alves Gato .
É claro que no Carnaval os bailes do " Casino " e do " Grémio " também chamavam a atenção dos veraneantes e aí também eram de " arromba ", mas em épocas diferentes. Havia, de certa forma, uma classificação natural nos extractos sociais e os menos favorecidos também tinham os seus divertimentos como os bailes realizados no " Carvoeiro " --- no " Salão Moderno " --- também designados por " Bailes das Sopeiras " --- onde indivíduos de classe social mais elevada se vestiam mais pobremente para poderem ter aceitação, pois caso contrário não dançavam --- .
Durante as Festas dos Santos Populares também havia os bailes da " Praça ", sucedendo a mesma coisa que nos bailes do " Carvoeiro " .
Com o cair da noite as pessoas iam regressando a suas casas, esperando que no dia seguinte não houvesse neblina, que muitas vezes se fazia e se continua ainda a fazer sentir nesta época do ano .
Eu e os meus irmãos lá voltámos a penates. O dia seguinte estava predestinado a ser igual ao anterior, mas sempre nos dava o prazer a vida sã que levávamos .
Dá saudades, pois dá. E é por tudo isto que gostaria de ver voltar a Ericeira aos tempos em que eu era menino e moço, onde nos divertíamos vivendo intensamente uma alegre e não menos pacifica juventude, onde o " Jogo da Bola " era ao fim e ao cabo o ponto de reunião da nossa sociedade, que já não volta .
Ericeira, 1991

( Texto apresentado a concurso aos 2ºs. Jogos Florais da Liga dos Amigos da Ericeira em 1991 e vencedor destes Jogos na categoria de " CONTOS E NARRATIVAS " )

A PONTE ( FINAL )

...///...

A " Família " desmembrou-se um pouco, aliás como era natural, mas sempre restava a hipótese de se reconstituir, quando todos cá chegássemos. Julgo que também eu próprio sonhava com utopias, com castelos no ar, pois cada um tinha a sua vida para viver e nada nos garantia, que pudéssemos ficar próximos uns dos outros, o que realmente nunca pôde acontecer, ficando cada um de nós em cada canto da cidade ou mesmo fora dela como foi o caso do Carlos Ventura .
O Carlos Ventura e o Pai Machado ficaram comigo no Huambo até ao fim dando por várias vezes o seu lugar nos aviões a outros mais necessitados e com menos esperanças de vida. Só quando a vida do Pai Machado perigou devido ao seu relacionamento com o filho, notável membro do MLPA naquela época, é que saiu para Luanda escondido num portabagagens do carro do Carlos Ventura até ao aerpoporto, embarcando sob sigilio absoluto no primeiro voo disponivel. O próprio Carlos sentiu a sua vida ameaçada devido a essa situação e por várias vezes quiseram-no abater também. Nas vésperas da independência, terminada a Ponte Aérea, o Carlos seguiu viagem comigo até Lisboa onde a mulher e a filha o esperavam. Mais tarde o Pai Machado e a Mãe Palmira vieram definitivamente de Luanda para Lisboa e várias vezes nos reunimos sempre que os filhos Armando ou Carlos vinham a Portugal com as esposas e os filhos destes. O Pai Machado ainda chegou a voltar ao Huambo com a Mãe Palmira, tendo-os encontrado aí como disse, em 1983, mas como o ambiente de insegurança continuava e completamente desiludidos desistiram de tudo e voltaram definitivamente para Portugal .
Quando terminou a ponte aérea procurei em Lisboa o Gil e a Teresa, que tinham acabado de " dar o nó ", tendo-se unido pelos laços matrimoniais como era de esperar. Porém, os problemas que eu supunha virem a existir começavam a concretizar-se. Os empregos eram parcos e o Gil e a Teresa nada tinham ainda conseguido com que pudessem sair do sufoco em que estavam. É certo que o IARNE pagava um pequeno abono de alimentação e dormida, mas tão pequeno era, que não dava para quase nada. Ficaram durante algum tempo hospedados no Hotel D. Manuel, mas não era o que eles esperavam, por nunca terem acreditado no que eu lhes havia dito em tempos. A vida começava a desiludi-los profundamente e as recordações da sua terra de Angola sobrepunha-se à necessidade da própria resolução dos seus problemas que, apesar de tudo, tão estoicamente enfrentavam .
O pai do Gil não conseguira recuperar totalmente da sua saúde e muito menos encontrar-se. Os tempos de Angola ainda lhe eram presentes com demasiada frescura não fazendo outra coisa senão lastimar-se pela perca dos seus haveres e, em especial, pela ausência da sua companheira desaparecida em tão brutais circunstâncias e ainda por cima culpando-se do sucedido por não ter sido capaz de o evitar .
Quem vivia bem, sem problemas económicos ou de espécie alguma e se vê repentinamente a braços com uma desgraça daquelas, quase sempre procura justificar a sua vivência culpando os outros pelo que lhe sucedeu, não encontrando forças para reagir a tal situação, ficando psicologicamente bloqueado, em nostálgicas miragens, que não levam a outro lado senão ao desespero. Por outro lado a idade não perdoa e muitas menos hipóteses há de poder arranjar trabalho. A falta de emprego ajudou profundamente ao avolumar constante de problemas e de incertezas. Uma das irmãs do Gil casara há alguns anos com um “ ricaço “ em Angola, que a tempo se pôs a salvo com os seus haveres, metendo-se a político para salvaguarda dos seus interesses pessoais. Como se isso não bastasse levou a mulher atrás da sua forma mesquinha de pensar, transformando-a completamente. Nem o próprio pai ela auxiliou, quando ele mais precisava e creio bem que até a noticia da morte da própria mãe não terá passado de uma noticia irrelevante tanto para ela como para o marido, pois procuravam ainda denegrir as pessoas mais chegadas, de maneira a poder levá-las ao seu total afastamento, não fora o caso de poderem vir a prejudicá-los na sua vida social e política. As irmãs que estavam na África do Sul nem se dignaram a escrever sobre a morte da mãe, apesar do Gil ter tido o cuidado de as informar telefonicamente, aquando da primeira vez que foi a Luanda depois do sucedido, pois do Huambo não tinha tido possibilidades de o fazer. Contou-me na altura que elas receberam a noticia com a maior das naturalidades e nem sequer perguntaram pelo pai, o que o deixou completamente de rastos pela frieza das irmãs. Em suma, um nojo. A outra irmã, mais velha e mais sensata resolveu não deixar o pai tal como ele, especialmente quando soube o estado de saúde mental que o afectava, fazendo tudo para melhorar a sua situação financeira e familiar. Todos os trabalhos lhe serviram desde que lhe proporcionassem a entrada de mais algum dinheirito em cofre, de si próprio muito abalado, com que pudesse fazer face às imensas despesas, que Ía tendo acima de tudo com a doença do pai. Desde lavadeira de roupa num hotel até empregada de copa em " part-time " tudo lhe servia. Não nos esqueçamos que no Huambo onde sempre vivera nunca lhe faltara nada nem mesmo empregados para a servirem. Nunca tivera a mínima privação. Contudo, soube perfeitamente adaptar-se, embora por necessidade, devido a ser de entre todas as irmãs a única que tinha um espírito bem formado, à mais que incómoda situação em que se encontrava para seu bem e de seu pai .
Com o decorrer dos tempos o Gil e a Teresa foram perdendo todas as ilusões. A única esperança que restava ao Gil era voltar ao Huambo, quando a guerra terminasse ou as coisas se moderassem substancialmente .
Entretanto, um irmão do pai continuava em Luanda com altas funções dentro do MLPA, a nível da Secretaria de Estado do Café --- mais tarde absorvida pela Secretaria de Estado da Agricultura --- e o Gil escreveu-lhe várias vezes sem obter resposta. O cunhado que ficara em Luanda tudo fazia para o demover das suas intenções, tendo mesmo escrito ao tio para que não ligasse às cartas do Gil, conforme lhe confessou a irmã casada em Luanda, chamando-lhe os nomes mais depreciativos que se poderá imaginar, neles incluindo o de " calão " e outros ainda piores. Eu sabia bem o quanto isso não era verdade, pois o Gil quase não dormia trabalhando em tudo o que lhe vinha à mão, desde cabarés com música ao vivo a Night Clubs privados, dando espectáculos por tudo quanto era sitio apesar de ser pessimamente recompensado pelo seu fatigante trabalho, sendo ele a mola real das finanças caseiras .
O Gil e a Teresa pediram-me por vezes diversos conselhos e procurei auxiliá-los o melhor que podia e sabia. Como tinha um amigo em Lille, França, escrevi-lhe a contar a situação do Gil e pedi-lhe emprego para o casal, o que foi aceite na volta do correio para minha grande alegria e dos dois jovens, que logo fizeram as malas e partiram imediatamente para França a tentar refazer a sua vida .
Porém, ainda em Portugal, as coisas começavam a levar descaminho. A Teresa começara a mudar o seu comportamento para com o Gil e constava até que não se ía portando lá muito bem como esposa, passando a andar com uns e com outros na ausência do Gil. Eu próprio tive ocasião de o constatar para minha grande tristeza. O Gil sabia-o e andava totalmente " desatinado " e cada vez mais a ideia de voltar ao Huambo era para ele o único objectivo possível como resposta às suas ansiedades, tornando-se num nostálgico sentimento de saudade pela terra que o viu nascer. Nunca conseguira adaptar-se ao novo esquema de vida. Pouco tempo depois o Gil e a Teresa separaram-se em França como resultado inevitável das transformações psíquicas sofridas por ambos e o Gil regressou a Portugal por incompatibilidade para com a Teresa e para com a mentalidade Francesa, sempre na expectativa de uma resposta afirmativa do tio, a quem não deixava de escrever pedindo-lhe que intercedesse por ele. O meu amigo de Lille escreveu-me dizendo da muita pena que tinha do Gil, pois ele era um extraordinário trabalhador e um impressionante artista, o que eu de sobejo já sabia, lastimando a sua perca, pedindo-me que o não desamparasse e avisando-me que o Gil começava a dar mostras muito sensíveis de vir a entrar numa crise depressiva de esquizofrenia, que lhe poderia vir a ser irremediavelmente fatal .
A certa altura desenlaçou-se a meada sem que eu o previsse, pois o Gil, embora triste, andava calmo e tinha arranjado trabalho certo num Night Club, onde já tinha trabalhado antes de ir para França .
O Gil pôs termo à vida afogando-se no rio Tejo, para grande desgosto de todos os que o conheciam, mas que nada podiam fazer para melhorar a sua situação e nem sequer puderam impedir o seu acto tresloucado .
Contaram-me depois que o Gil, entretanto, se tinha dedicado a viver de expedientes ilícitos como a droga, etc. . . . etc. . . . deixando o emprego certo, trocando-o por outros incertos, de forma a poder arranjar dinheiro fácil para se poder ir embora para qualquer lado e que a certa altura teria sido agarrado quase em flagrante pela judiciária, que o deixou ir em liberdade a troco não sei de quê .
Para azar do destino, soube pela irmã, que vivia com o pai, que o tio havia escrito uma carta ao Gil mandando-o regressar a Luanda enviando-lhe o dinheiro das viagens para ele e para o pai e irmã, tendo tudo preparado para os receber e onde lhe dizia que lhe arranjara um emprego capaz dentro da Secretaria de Estado, mas ela não tinha conseguido encontrá-lo para lhe entregar a carta do tio, porque há mais de uma semana que ele não Ía a casa. Não tinha conseguido encontrá-lo e, por isso, ele não tinha tido conhecimento do conteúdo da missiva. Ela recebera-a dois dias antes da morte do Gil, mas como ele já não parava em sitio certo, fora-lhe impossível levar ao seu conhecimento as tão esperadas noticias do tio .
Da Teresa nunca mais soube nada a não ser que já não se encontra a trabalhar no local que o meu amigo lhe arranjara em Lille, e que possivelmente se tinha dedicado à prostituição. Tudo o levava a crer nesse sentido. Ela despedira-se do restaurante onde trabalhava ao dar aso a um escândalo que envolveu o dono do restaurante, a quem a mulher deste deu um tiro por causa dela. Infelizmente, seria um dos muitos escândalos, que já tinha dado em Lille, segundo informações do meu amigo, que se transformara em protector do Gil à minha semelhança e por meu intermédio, embora por seu merecimento .
Do Gil só fiquei a saber o local da sua campa no cemitério do Alto de S. João, em Lisboa, tendo o seu corpo sido transladado mais tarde para o Huambo a instâncias minhas e de outros amigos comuns, que comunicaram com o tio e a irmã e que conseguiram concretizar o último desejo do Gil, ou seja, voltar ao Huambo pela última vez .
Da irmã e do pai soube que não tinham aceite o convite do tio do Gil, porque só queriam ir para o Huambo e não para Luanda e somente quando as coisas arrefecessem finalmente por lá e que, pelo contrário, tinham arranjado uma casinha onde viviam mais desafogadamente em virtude de ela ter arranjado um trabalho fixo bem remunerado e que o pai melhorara de saúde, mas com uma vontade persistente de voltar como o filho para o Huambo, na esperança de que a guerra terminasse a todo o momento. Aliás, a filha, como já o disse, também tem essa intenção e espero bem que a possam concretizar para descanso de ambos, que bem o merecem pelas privações por que passaram .
Da ponte aérea só ficou a lembrança dos tempos passados no Huambo com todas as atribulações que narrei. Decerto esqueci propositadamente muitos pormenores relativos à ponte aérea e ao meu relacionamento com o Pai Machado, a Mãe Palmira ou com o meu inseparável amigo Carlos Ventura. Diga-se em abono da verdade que se alguns desses pormenores foram esquecidos propositadamente, outros houve que inadvertidamente os esqueci por lapso de memória, compreenda-se.
Paciência . . .

A PONTE ( 2ª. PARTE )

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Entre pessoas a dormir no chão sobre a placa de cimento ou sobre improvisadas camas feitas com cobertores e montes de bagagens pessoais a servirem de almofadas --- os enxergues eram destinados prioritariamente aos doentes e às crianças sendo pequena a sua quantidade distribuída por não haver mais nem podermos mandá-los vir de onde quer que fosse --- peque-nos trilhos eram deixados entre as filas de enxergões para se poder passar de um lado para o outro do barracão ao qual duas pequenas portas --- uma frontal à outra --- davam acesso. Condições higiénicas eram quase nulas e as latrinas improvisadas no exterior do barracão --- nas traseiras, a uns vinte metros da cozinha de campanha --- fediam quanto podiam, deixando no ar um nauseabundo aroma tão pestilento quanto inacreditável. Banhos ou lavagens aí nem pensar. O que nos valia ao Grupo TAP era a possibilidade, quando a havia, de irmos ao Hotel Almirante tomar o nosso banho e refrescarmo-nos um pouco --- é certo que mais tarde alguns dos habitantes, que abandonavam as suas casas, nos entregaram as chaves das mesmas para irmos habitá-las, porque ficavam mais perto do aeródromo e onde havia um mínimo de condições de habitabilidade inexistente neste e na esperança de que elas não fossem invadidas pelos guerrilheiros dos diversos Movimentos para as ocuparem selvaticamente e para que não fossem assim destruídos os seus haveres imobiliários --- .
Quantas vezes não aparecia um " Cow-Boy " da FNLA ou da UNITA --- vestiam-se da mesma maneira sem qualquer distintivo, pois os únicos que o usavam naquela época eram os CHIPENDAS, tornando-se assim difícil distinguir a que Movimento pertenciam --- perdido de bêbedo e vociferando palavras desconexas com olhar esgazeado, carregando uma Breda sob um braço pronto a disparar sobre as pessoas indefesas, na maioria mulheres e crianças --- Breda, sim, pois não se contentavam com pequenas armas automáticas tipo G3 ou FN apanhadas às tropas portuguesas nem às do tipo KALATCHI, provenientes da China e da União Soviética, diferentes das Checoslovacas pela existência de um pequeno punhal que servia de baioneta ---. Esperava Unicamente um motivo suficientemente forte, que o levasse a carregar no gatilho e lhe proporcionasse demonstrar pela lei do mais forte, mas não pela razão, que ali quem mandava era ele e mais ninguém .
Só o bom senso apaziguava as situações delicadas com esta, mas lá íamos fazendo o nosso trabalho à custa de muito esforço, de muitas dores de cabeça e de uma inquebrantável força de vontade anímica que nos assistia e que nunca foi reconhecida pelas autoridades empregadoras ( TAP ) ou pelo governo Português, de certa forma responsável por aquela agonia .
Após alguns dias esporadicamente passados no Hotel Almirante, pois eram muitas as vezes que não podíamos lá ir, algumas das pessoas que partiam deixavam-nos as chaves dos seus carros para que os utilizássemos enquanto lá estivéssemos --- e haviam-nos de óptimas marcas ---, dando-nos instruções para os destruirmos se ou quando não precisássemos mais deles. Por exemplo, o " meu " Citröen " boca de sapo " branco lá ficou sem chave de ignição, sem altifalantes nem rádio, que os trouxe para o proprietário, e sem pinga de gasolina em frente ao barracão onde fazíamos check-in, cumprindo ordens expressas pelo seu dono. Voltando ao Huambo alguns anos depois, fui encontrá-lo exactamente no sitio onde o deixei mas completamente destruído pelo fogo. Houve, porém, quem estampasse propositadamente o " seu " automóvel, cumprindo os desejos de quem não pensava mais ali voltar e para que ninguém o pudesse mais utilizar .
Entretanto, outros colegas vindos de Lisboa vieram engrossar o grupo, chegando a ter quinze elementos distribuídos pelas várias casas da cidade, que entretanto nos iam deixando à nossa guarda enquanto ali estivéssemos .
O ambiente era sempre escaldante, mais pelo resto do que pelo calor, que a esse já estávamos habituados, e foi sob esse clima escaldante, que conheci um casal de namorados : a Teresa e o Gil. Ela, professora na Escola Comercial e Industrial do Huambo, com cerca de vinte anos de idade, e ele, músico profissional, um pianista excelente, rondaria pelos vinte e três ou vinte e quatro anos de idade. Era um casal bem talhado, com uma excelente cultura geral e vastos conhecimentos da sua terra. Ela branca e ele mulato claro, ambos de óptimas famílias, que ainda consegui conhecer e com quem convivi durante mais de um mês antes de virem para Lisboa, à excepção da mãe do Gil, que a UNITA fez sucumbir sob a sua violência gratuita, tendo sido brutalmente assassinada na ausência do filho, que entretanto se encontrava em Luanda, quando tentava defender o marido .
Após esse terrível revês o pai veio para Lisboa logo de seguida, ficando o Gil a tratar de embarcar todas as suas coisas. Mal chegou a Lisboa o pai foi hospitalizado com problemas do foro psíquico, mas segundo já se sabia teria voltado para casa de um familiar onde ficara recolhido com uma das irmãs do Gil, que ainda era solteira como ele, embora fosse a mais velha. Duas outras irmãs estavam casadas na África do Sul, enquanto uma quarta se encontrava em Luanda também casada .
Os pais da Teresa vieram ao mesmo tempo que o pai do Gil e passado um mês da sua vinda ainda nada se sabia sobre eles, pois não tinham recebido até então quaisquer noticias, porque não havia movimento de correspondência entre a cidade do Huambo e o exterior. O único contacto que havia era através dos aviões , que faziam a Ponte Aérea .
A Teresa ficara no Huambo só por causa do Gil, que se debatia com imensos problemas e precisava da máxima ajuda possível naquela hora mais apertada da sua vida .
Viviam ambas as famílias na Granja, na parte baixa da Cidade, perto da Livraria Nova York, umas das melhores livrarias que conheci quanto a instalações, mas que quase nada continha por falta de abastecimentos, o que aliás era apanágio de todas as lojas e armazéns naquela cidade e naquela época .
As casas que habitavam deveriam outrora ter usufruído de todos os encantos e de todo o bem-estar, pois até piscinas privadas se podiam ver anexas em belos quintais ainda repletos de esplendorosas flores e palmeiras de leque entre outras plantas exóticas tropicais, que lhes davam um encanto muito especial, apesar do contraste existente entre a harmonia colorida das flores e a desarmonia insensata dos homens .
Sob pequenas arcadas tipo colonial existentes nos varandins dos primeiros andares das moradias encontravam-se ainda em óptimo estado cadeiras de baloiço, que me serviram durante alguns poucos momentos para descansar enquanto conversava com esses dois amigos, refazendo-me do cansaço obtido com os meus afazeres profissionais .
Dali via-se uma cidade desertificada, uma cidade fantasma, levemente acordada por uma ou outra viatura militar, que de tempos a tempos traçava uma linha imaginária numa determinada direcção fixa sem se deter .
Nas ruas só os cães ou gatos deixados " ao Deus dará " pelos seus donos podiam fazer ouvir as suas lamentações, os seus fraquíssimos latidos ou os seus tristes e famintos miaus. Raramente se via seres humanos nas ruas da cidade, talvez até porque a maioria deles já tivesse debandado e parte se encontrasse no aeródromo à espera de transporte e, até mesmo os militares dos " Movimentos ", fosse qual fosse a facção, não palmilhavam a cidade senão pelo fim da tarde --- já que serviço era serviço ---, pois ao " luscofusco " sempre era mais difícil que algum atirador furtivo os alvejasse por falta de visibilidade .
Convivi com o Gil e a Teresa, como já o disse, cerca de um mês, até que depois de tudo tratado puderam embarcar, embora tivessem que esperar a sua vez cerca de uma semana.
As listas de passageiros eram-nos fornecidas pelo IASA e pelo IARNE e eram seguidas " à risca ", a fim de que não houvesse situações anómalas, que pudessem criar problemas e conflitos inter-pessoais. O fluxo de passageiros era totalmente controlado por aqueles organismos, que funcionavam sob a égide das Nações Unidas e da Cruz Vermelha Internacional e se o ambiente era escaldante, podê-lo-ia ser muito mais se houvesse alguma deturpação nas listas de passageiros, o que era evidente, pois toda a gente tinha os nervos à flor da pele, o que era perfeitamente compreensível devido ao momento verdadeiramente rocambolesco, que ali se vivia. Não quero dizer que não tivesse havido " alterações de última hora " aos programas, mas não cabe qualquer responsabilidade ao grupo TAP por qualquer dessas trapalhadas, que pudesse ter havido --- e sabíamos que isso aconteceu ou pelo menos falava-se nisso na altura, mas sem nunca terem sido apresentados nomes de culpados --- pois o controle era totalmente feito por essas organizações e só aceitávamos os passageiros, que elas nos mandavam e constantes das listas previamente preparadas por elas sem rasuras, as quais nos eram entregues sempre que chegava um avião. Só tínhamos que informar essas organizações das capacidades existentes em cada avião, quanto a passageiros .
Tudo o que dizia respeito a controle de nomes de passageiros era com aquelas organizações, felizmente para nós. Só cabia ao grupo TAP o controle numérico de passageiros e das suas bagagens e nada mais, embora nos tivéssemos metido em acções humanitárias apoiando a Cruz Vermelha Angolana e as organizações humanitárias já referenciadas, como era o caso de distribuição de alimentos especialmente às crianças, sempre que julgávamos oportuno e conveniente, desde que essas acções não pusessem em perigo o nosso objectivo principal, que era o de fazer transportar o maior número de pessoas no mais curto lapso de tempo, pois era para isso que nós lá estava-mos .
A Teresa e o Gil faziam projectos quanto ao futuro e apesar de todas as contrariedades era engraçado ouvi-los conversar sobre o que fariam quando chegassem a Lisboa. Porém, era-me muito difícil transmitir-lhes a minha visão do estado caótico a que chegara a vida na capital portuguesa, por força da revolução em curso .
Momentos mais que obscuros toldavam os céus de Portugal e a Revolução havida deixara o país num estado lastimoso e lamentável, quanto a empregos, saúde, alimentação, habitação, etc. . . . etc. . . . , económica e financeiramente nem se falava, pois era uma situação passível de ser colocada na " rua das amarguras ", tudo isto aquecido pelo aumento caudaloso das pessoas que iam das ex-colónias em número de muitos milhares .
Continuávamos no país a atravessar uma situação post-revolucionária com todos os problemas a ela inerentes, especialmente o da confusão social que se instalou no país devido à luta de classes menos favorecidas pelos diversos tipos de direitos, que entretanto foram disseminados adentro das fronteiras sem qualquer noção de ordem ou mesmo de obrigações inerentes, transformando tudo numa lamentável balbúrdia. Enfim, uma lástima completa. Politicamente agudizava-se o país extremando-se posições através da bipolarização ideológica partidária. Estávamos em pleno " Verão quente " de 75, como ficou conhecido aquele período histórico onde todos mandavam e ninguém mandava realmente, nem mesmo o Primeiro Ministro de então, Vasco Gonçalves .
Mas os meus amigos não queriam acreditar que o estado do país fosse tão mau como eu lhes dizia e faziam e refaziam os seus projectos pedindo-me conselhos, que não estavam de forma alguma ao meu alcance fornecer-lhes por falta de habilitação. Porém, ia fazendo o que podia por aqueles novos amigos, encorajando-os, enquanto me encorajavam a mim a fazer o meu trabalho numa relação de amizade crescente .
Por vezes à noite juntávamo-nos no Hotel Almirante onde descansávamos um pouco, enquanto não havia aviões --- o que era raro --- ou eu não entrava no meu turno de serviço. Era preciso estar sempre alguém em situação de alerta no aeródromo, não fosse aterrar algum avião, pois as comunicações eram demasiado deficientes e só o saberíamos se lá estivesse alguém. De certa forma, ainda tínhamos sorte, pois a linha de comunicação existente entre o aeródromo e o Hotel ainda funcionava, o que não acontecia com a rede geral interurbana. A Torre de Controle onde permanecia quase vinte e quatro horas por dia o meu amigo Xavier era o nosso centro de comunicações, pois era ele que nos dava as informações de chegada dos aviões, por conseguir contactá-los através da fonia alguns momentos antes da sua aterragem, dando-nos tão rápido quanto lhe era possível a informação da hora de chegada desses aviões. Máquinas de telex haviam-nas e bastantes, mas não serviam para nada pois não funcionavam. Eram assim substituídas pelo Xavier, que num esforço sobre-humano mantinha em funcionamento uma sala de comunicações onde nada funcionava a não ser uns altifalantes em péssimo estado e um pequeno microfone e ainda por cima a trabalhar sozinho .
No bar do Hotel Almirante juntávamo-nos com outros convivas e cantava-mos uns fados para animar o pessoal e a mim próprio, fazendo-nos esquecer por momentos aquele mórbido ambiente em que nos encontrávamos .
Alguns elementos da UNITA e da FNLA, que ali viviam e pertenciam aos quadros superiores dos Movimentos, várias vezes nos acompanharam nessas cantilenas, tendo sido criado entre eles e nós um clima minimamente agradável, o que para mim e para o resto do Grupo TAP foi de grande utilidade enquanto estivemos no Huambo, pois reconhecendo o nosso trabalho como sendo profundamente humanitário tudo faziam para que não fôssemos hostilizados pelos guerrilheiros nem que estes hostilizassem os próprios passageiros, que estavam no aeródromo à espera de partir para Lisboa .
Ainda hoje acho curioso o facto de muitos deles cantarem canções de Rui Mingas, o qual era já nessa altura um elemento célebre do MPLA, Movimento antagónico aos dos que ali se encontravam. Rui Mingas é hoje Embaixador da República Popular de Angola em Portugal, mas eu nunca falei sobre essa curiosidade com ninguém enquanto lá estive, por achar que me poderia dar mal com a conversa, como seria natural, dado ser sempre pouca toda a cautela e prevenção em casos semelhantes .
O Gil era um animador nato e não era só o piano que ele tocava divinalmente. A viola e o órgão electrónico contavam-se entre os instrumentos, que ele sabia manejar com maior destreza para gáudio dos que o podiam ouvir tocar e com ele deliciar-se. A sua sensibilidade era extraordinária. Dava um prazer imenso ouvi-lo dedilhar a viola assim como ouvi-lo num trecho clássico tocado ao piano ou com o órgão. Gostava imenso de fazer experiências com os instrumentos, o que dava grande alegria a quem o ouvisse tocar, mesmo por brincadeira. Havia além disso sempre uma frase hilariante na ponta dos seus lábios a responder a qualquer interjeição caprichosa de um ouvinte fosse ele quem fosse e de que sexo fosse, acompanhando essa frase com alegres e extrovertidas momices. Ninguém lhe levava a mal, porque desnecessário, mesmo que essa frase levasse consigo um pouco de rebeldia ou de piri-piri. Nunca se escusava quando lhe pedíamos para tocar determinado trecho, acompanhando sempre a acção com um sorriso nos lábios e uma frase delicada. Um dos trechos, que melhor tocava em viola, era o Concerto de Aranjuez, se bem me recordo. Foi efectivamente dos melhores artistas natos que conheci em toda a minha vida. Mesmo durante o dia a dia sobressaia nele a sua faceta artística. Gostava muito de conversar com o seu modo alegre e muito peculiar e as suas conversas iam quase sempre finalizar senão à música pelo menos a temas referidos à etnografia dos povos Angolanos, áreas em que ele se sentia mais à-vontade para falar. Era sem dúvida um dos seus assuntos preferidos. A Teresa não era espectadora passiva, pois intervinha frequentemente nas conversas, quando e especialmente se tratava desses assuntos. Muito aprendi com eles nessa época, referenciando particularmente o povo Bailundo, sobre o qual muitas horas passou em buscas nas Bibliotecas da Escola Comercial e Industrial e do Liceu do Huambo e na Delegação do SNI ( Secretariado Nacional de Informação ) de Luanda, preparando um trabalho que, segundo creio, nunca chegou a publicar por os manuscritos se terem extraviado durante a sua vinda para Lisboa, o que lastimo imenso, pois cheguei a vê-los e a ler alguns trechos escritos numa linguagem simples mas arrebatadora .
A Teresa ajudara-o muito nessas investigações sempre que tinha algum período de lazer ou quando os seus familiares se encontravam em férias mas não iam a Luanda ou não vinham a Lisboa, permanecendo no Huambo, o que faziam quase todos os anos. Ela chegou a dizer-me que tinha abdicado muitas vezes desses passeios para poder ajudar o Gil nas suas investigações, havendo-se correspondido até com especialistas portugueses e estrangeiros nessa matéria durante os dois últimos anos da sua estadia no Huambo, mostrando-me alguma correspondência de personalidades bem conhecidas da cultura portuguesa, cartas essas dignas de serem levadas ao prelo, dando-se assim a conhecer aos vindouros o seu conteúdo cheio de interesse etnográfico. Infelizmente tudo se perdeu, porque a mala onde vinham esses documentos extraviou-se de tal maneira que nunca mais foi encontrada. Sabe-se que à chegada dos aviões a Lisboa muitas coisas desapareceram. Quem foi que as roubou ? É uma incógnita que nunca terá resposta e fará parte, decerto, do
rol de crimes perfeitos, porque se desconhecem os seus autores para todo o sempre .
Porque as famílias já se tinham vindo embora para Lisboa ou para Luanda, dois novos elementos juntaram-se a nós, passando a encontrarmo-nos com muita frequência, tendo formado um grupo onde a amizade se cimentou a partir da mútua necessidade de convivência e do mútuo equilíbrio de ideias, que apontavam objectivos comuns : O Pai Machado --- cujos filhos eram meus amigos de infância, quando estudaram em Mafra --- e o Carlos Ventura. O Carlos tem a minha idade e é casado com a Zita e pai de uma menina chamada Sandra, que naquela época tinha cinco anitos. O Pai Machado, hoje já falecido, ultrapassava os sessenta e muitos anos e era casado com a Mãe Palmira, excelente senhora e óptima cozinheira e doceira --- estou a lembrar-me de uma célebre Muambada de Galinha acompanhada de Funge e de um caril de peixe espantoso, que comi em casa deles, quando voltei ao Huambo em 1983 em visita particular, a convite do Comissário Geral da Policia de Luanda, senhor Azevedo Costa. Como doceira era ela espantosa também, como disse, e era conhecida mesmo em Luanda a sua " Jinguba doce ", que fabricava e exportava para vários lados incluindo Lisboa, que fazia a partir do amendoim ( jinguba ), dando-lhe a aparência de " amêndoa torrada ", mas não o sabor, que só ela lhe sabia dar através dos seus segredos profissionais --- .
Tal como o Gil e a Teresa estes dois elementos eram ambos óptimos convivas e bons faladores e sempre predispostos a ajudar nas alturas em que era mais preciso, sem esperar qualquer espécie de recompensa, tornando-se amigos verdadeiros. A eles lhes agradeço tudo o que fizeram a meu favor e do Grupo, mesmo tendo-o feito na maior parte das vezes despercebidamente, ou antes, sem darem nas vistas. Sentia-se, isso sim, os efeitos da sua actuação ao vermos determinados problemas resolvidos, que só o poderiam ser por pessoas profundamente conhecedoras de todos os " cantinhos " da cidade, o que não era o meu caso, num jogo ainda possível de influências. A única contrapartida que sabiam poder esperar era a que efectivamente recebiam, ou seja, uma franca amizade, que a pouco e pouco se foi tornando cada vez mais profunda, cujos laços ficaram cimentados para sempre, transformando este pequeno grupo de cinco amigos numa verdadeira família .
Ainda hoje, quando falo com o Carlos Ventura sobre esses tempos passados, nos vêm as mais gratas recordações, rindo de situações, que nessa altura não eram de forma nenhuma para rir mas sim para recear e muito pelas nossas vidas em risco constante .
Entretanto, a Teresa e o Gil lá iam fazendo os seus projectos e eu com o coração apertado sem saber como os levar à razão sem os magoar ainda mais do que eles estavam pela sequência rápida dos acontecimentos. Ninguém me podia ajudar nesses momentos tristes. Sabia bem quais os problemas que eles iriam enfrentar quando chegassem a Lisboa e não via humanamente quaisquer possibilidades de resolução. Não sabia como demovê-los de algumas das suas intenções perfeitamente utópicas. Só esperava que sucedesse um milagre àqueles dois bons amigos e isso não era de forma nenhuma provável. A Teresa acompanhava-nos como se fosse a sombra do Gil e assim fomos vivendo --- e eu com aquela agonia --- até ao dia da sua partida. Só falei com o Carlos Ventura e com o Pai Machado sobre o assunto depois do avião ter levantado voo rumo a Portugal e deram-me razão por inteiro apaziguando as minhas preocupações, mas sem que o meu espírito se tranquilizasse completamente, por saber o destino que os esperava .

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