É triste, quando temos a sensação de que este mundo em que vivemos nada vale .
Foi o que me aconteceu há alguns dias, quando dava o meu passeio habitual depois das refeições ao longo da sala de embarque dos voos internacionais do Aeroporto da Portela de Sacavém, em Lisboa .
Ouvindo um forte burburinho proveniente do primeiro andar daquela sala e levado por intensa curiosidade, subi. Fui ver . . . Era junto ao bar . . .
Com os olhos encovados, um homem, junto ao balcão, murmurava palavras rancorosas. À volta dele outros passageiros, e não só, cochichavam, enquanto no chão vários cacos de chávena ou pires jaziam solenemente partidos .
Ninguém lhes tocava como se fosse tabu. Enquanto isso, o homem desfazia-se em lamentações --- e, porque não, também em vinho ? --- Pelo que percebi de todo aquele sussurrar, haviam-lhe tirado algo. Pensei que fosse a carteira ou outro objecto valioso. Francamente, só passados que foram mais de dez minutos, entendi que lhe haviam roubado a companheira . . . naquele momento a ser de outro como se de um objecto se tratasse .
Levado pelo ambiente, encontrei-me inesperadamente junto ao balcão e já que ali estava pedi algo que me refrescasse, já que o calor se tornava intenso, apesar de ter, havia pouco tempo, acabado a minha refeição .
De sussurros passou a berros . . . e o homem berrava com quanta força tinha. Depois . . . pouco a pouco foi-se acalmando, pondo-se a chorar filosofando sobre a presença dos cacos que, continuamente, jaziam no chão, sem que ninguém os apanhasse ou se preocupasse com eles ... Semente o homem que chorava, estava interessado na sua presença, fazendo comparações entre si e os jacentes cacos .
O homem tinha o colarinho da camisa amarela aberto e, por isso, a gravata azul listada dançava-lhe no pescoço, onde um crucifixo, que me pareceu simples e de prata, baloiçava num fino cordão. O casaco castanho e as calças ao mesmo tom amarrotados, davam-lhe um inconfundível ar de desleixo. Todavia., os sapatos engraxados e a barba bem escanhoada contrastavam com o resto do perfil. O cenário era deveras curioso . . . embora um pouco triste para o meu gosto . . .
Bebi o que bebi, não deixando nunca de prestar atenção àquele homem, pois fora ele que chamara a minha atenção e provocara a minha presença naquela sala .
O cabelo com leves brancas aqui e além redemoinhava como se tivesse sido apanhado por um vendaval, enquanto os seus lábios descoloridos e os seus olhos demasiado raiados de vermelho expressavam esgares incríveis. Na sua mão direita, inexplicavelmente porque ainda não tinha caído sobre o soalho alcatifado da sala, uma beata não passava de um pedaço quase irreconhecível de cigarro apagado e bem apagado, segura por dedos finos onde se encastoava um anel, enquanto na sua mão esquerda sobressaia uma fina aliança de ouro .
Compreendi que aquele já não era um indivíduo cheio de ilusões. Tinha um ar cigano, pela sua tez morena e sobrancelhas negras, que contrastavam com a cor do cabelo. Era alto e esguio e aparentava ter cerca de cinquenta anos de idade. Fez-me supor ser um homem vivido, apesar de tudo, embora não adaptado .
Transformara-se num farrapo humano. O espectáculo era francamente triste e desolador . . . muito triste, mesmo .
O que pensaria o outro, que levou a mulher, se soubesse o que se estava a passar, acerca de tudo isto ? E sabê-lo-ia, porventura ? Estar-se-ia regozijando . . . até quando ? E a mulher ? O que pensaria ela de ter deixado aquele homem ?
Tudo o que de belo existe na vida é o que se passou, pois o amanhã pode ser o nada junto ao fim numa eminente e insofismável incógnita .
O homem, esse exemplar da Natureza, deixou os seus pensamentos voar através da voz e neles entravam continuadamente queixumes, revolta e maldições rancorosas .
A certa altura parou de falar e olhou para todos os lados, como se procurasse alguém ou tentasse desvendar algum mistério. Puxou de um lenço, amarrotado, por sinal, e limpou o suor, que gotejava pelas faces e lhe afogueava a testa e o pescoço. Parou os seus movimentos e esgares e, penso, naquele momento terá raciocinado um pouco. Pediu a conta sob uma calma aparente e pagou-a, não parecendo prestar atenção a quem o rodeava, deixando uns míseros trocos sobre o balcão com um gesto de desprezo, indicando serem para o empregado que o serviu e guardando de seguida na algibeira exterior do casaco a carteira de pele castanha .
Cambaleando, dirigiu-se para a escada, que eu tinha subido algum tempo antes e desceu-a amparado pelo corrimão de madeira, que lhe ficava mais a jeito .
Continuando a minha curiosidade, desci atrás dele após ter pago também a minha conta. Atrás de mim outros surgiram a ver o que se iria passar. Os que ficaram no alto das escadas continuaram a cochichar, escarnecendo daquele Ser Humano .
O homem desceu até à área da alfândega e, saindo da gare, chamou um táxi, desistindo de voar como havia previsto. Meteu-se nele e partiu com rumo ao, para mim, desconhecido .
Não sei o que será feito dele agora, mas não deve passar do que era, quando vi pela primeira e última vez, a não ser que tenha conseguido dar a volta ao seu destino .
Era a razão da realidade do NADA, ou antes, a verdadeira fotografia colorida e sem retoques da VIDA, somente revestida pelas roupagens da mentira e da podridão . . .
Lisboa, 1984
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