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Nota Prévia :

Este Blog destina-se exclusivamente à divulgação de trabalhos escritos por mim para meu prazer e daqueles que eventualmente estivessem interessados na sua leitura.

Felizmente, foram muitos os que se me dirigiram a pedir que divulgasse alguns dos meus trabalhos, especialmente os que mais me marcaram ao longo da minha vida, daí ter feito uma escolha selectiva de entre todos eles, muitos ficando de fora, naturalmente .

Foi por esse motivo que surgiu este Blog .

Muitos desses trabalhos já haviam sido publicados em periódicos e revistas da especialidade e não só, muitos deles além fronteiras ( EUA e BRASIL ), e alguns chegaram mesmo a ser galardoados em Concursos de Contos e Poesias e diversos Jogos Florais .

À medida em que forem inseridos neste Blog, tentarei informar quais os já anteriormente publicados, onde e quando e se tiverem sido galardoados, quais os prémios que lhes foram atribuidos e quais as Organizações envolvidas .

Espero que a memória não me falhe e os meus apontamentos não estejam incompletos.

Ericeira, 20 de Janeiro de 2011

Carlos Jorge Ivo da Silva

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A PONTE ( 1ª. PARTE )


Recordar é viver. É bem certo. Quando recordamos determinadas situações, que vivemos intensamente, estas deixam-nos deveras perturbados, pois chegam-nos ao consciente determinados quadros, que gostaríamos nunca tivessem acontecido. Mas eis que eles aí estão para nos recordarem que a vida não é um mar de rosas, pois nos marcaram para todo o sempre, como espinhos, que rasgam a carne e nela permanecem enquanto existirmos .
Assisti há alguns dias à projecção televisiva de um filme português, o qual abordava um tema referindo a movimentação demográfica das ex-colónias portuguesas para a Mãe Pátria, que me deixou bastante pensativo, obrigando-me a recordar o que passei, há já alguns anos atrás .
Se por um lado o tema genérico daquele filme era do meu perfeito conhecimento por o ter vivido, por outro lado aquele caso especifico era por mim também conhecido em pormenor, embora em situação paralela, devido a ter acompanhado um caso idêntico, que levou um dos intervenientes a um fim muito mais trágico do que aquele apontado no ecrã televisivo, talvez escolhido para não impressionar o telespectador desprevenido. Será que o filme se debruçava exactamente sobre o caso que acompanhei e semente lhe foram introduzidas algumas " nuances " para não ferir susceptibilidades de verdadeiros intervenientes como eu ? E não fui eu na verdade o único que acompanhou o caso por inteiro ?
Como foi possível ser passado a filme um assunto de que só eu tive conhecimento pormenorizado, porque fui testemunha ocular dos factos e nunca contei fosse a quem fosse o sucedido e só agora me predispus-me a fazê-lo ? Francamente, deu-me e continua a dar-me que pensar, pois não encontro quaisquer respostas que me convençam de que se tratou de uma pura coincidência ou que a história terá sido transmitida entre as dimensões terrena e extraterrena, para que se pudesse perpetuar .
Narrar uma história verídica torna-se quase sempre mais difícil do que conjecturá-la no nosso pensamento, passando-a depois a escrito. Há pormenores que certamente nos falham quando mais precisamos lembrá-los e problemas de ordem psicológica dos intervenientes, que nem sempre estamos capacitados para analisar, porque na altura os abordamos superficialmente, pois que ao sermos intervenientes vivemos os factos " a quente ", não tendo ocasião para pensar sobre o assunto senão muito mais tarde e quando determinados pormenores já se afastaram do nosso subconsciente dificultando a revivência dos factos . Estes motivos levam-nos a um natural falseamento da história, ficando esta truncada ou incompleta por falta de elementos. Por muito cuidado que tenhamos e que queiramos ter, tal situação leva, evidentemente, a que a versão escrita venha a ser diferente da realidade, embora superficialmente o não pareça .
Tal não era o caso da versão televisiva, a qual narrava no seu mais ínfimo pormenor todos os elementos, que eu conhecia e de que vivamente me recordo, abordando com incrível fidelidade um problema de sobejo meu familiar, porém omitindo o verdadeiro local do inicio dos acontecimentos, que era a Cidade do Huambo, Angola, transferindo-o para uma outra qualquer cidade também de Angola, e utilizando Lisboa e Lille como parte derradeira da história --- o que era verdade --- e o final da narrativa ter sido transformado parcialmente, talvez pelas razões que já foram referidas .
Estávamos em Agosto de 1975 e uma ponte aérea entre o Huambo --- antiga Nova Lisboa, Angola --- e Lisboa começara havia pouco mais de um mês .
Como elemento da companhia aérea nacional --- TAP --- fora convidado a complementar um grupo formado por pessoal de Check-in, Placa, Load Control e de Manutenção para assistir tanto os aviões, que iam buscar pessoas e seus haveres, como também as próprias pessoas .
Essa equipe era formada fundamentalmente por 6 pessoas, tendo sido posteriormente e por necessidade alterado maioritariamente o seu número. O grupo inicial era liderado pelo senhor Balicha, que chefiava naquela época a Escala de Luanda e fora indigitado para a abertura de uma Escala com carácter temporário na Cidade de Huambo, a qual viria a ser desfeita por se tornar desnecessária após a conclusão da dita ponte aérea .
Chegámos ao Huambo via aérea em Noratlas da Força Aérea Portuguesa provenientes de Luanda onde nos havíamos agrupado. Viajaram connosco outros civis que, segundo apurei, pertenciam a " Movimentos " não gratos a Luanda. Procurava-se, assim, proteger vidas inocentes, transbordando pessoas e alguns dos seus haveres para as áreas onde os Movimentos a que pertenciam estavam implantados, fazendo-as sair dos locais onde facilmente pudessem perder as suas vidas por retaliação. Isso aconteceu vezes sem conta e todos os Movimentos foram responsáveis por esse tipo de atrocidades .
O Huambo encontrava-se, quando lá chegámos, sob o signo da destruição .
O MPLA ( Movimento Popular de Libertação de Angola ) estava a ser rechaçado ali pela UNITA, FNLA e CHIPENDAS. Desfizera-se o exército tripartido, que havia sido criado a partir do acordo de Alvor, e os seus partidários entrando novamente em desacordo levaram ao extremo a rivalidade, que sempre os separou .
O tiroteio na cidade era intenso no dia em que aí desembarcámos. Nas ruas fazia-se uma autêntica caça ao homem. Mais parecia um " Western ", que estava a ser rodado do que uma pavorosa realidade a que estávamos impotentes a assistir de braços caídos por nada podermos fazer para parar aquela fratricida mortandade .
Apesar do tiroteio conseguimos chegar ao Hotel Almirante onde fomos alojados não sem muito custo e a pedido expresso do Almirante Rosa Coutinho, naquela época Alto Comissário português para a Província de Angola .
Lá fora, no largo fronteiro ao Hotel situado em frente ao Liceu dois militares portugueses encontravam-se encostados a uma metralhadora Breda, sem intervirem na " caçada ". Talvez desejassem defender o enfiamento da Messe de Oficiais do exército português, que ficava a pouco mais de cem metros deles e a descoberto --- mas que poderiam fazer ali dois homens sozinhos com uma única metralhadora, quando os homens pertencentes aos Movimentos dentro da cidade se contavam por milhares e se encontravam armados sofisticadamente ? ---. Essa aparatosa demonstração de força tinha como pano de fundo o barulho, o sibilar e o rasto das balas tracejantes, durando até meio da manhã do dia seguinte ao da nossa chegada .
Tive conhecimento logo no primeiro dia, que um grande amigo meu, o Carlos Bandeira --- antigo elemento das Tropas Especiais ( TE's ), que lutaram ao lado das Forças Portuguesas antes do 25 de Abril --- era o Comandante em Chefe no Huambo dos guerrilheiros do MPLA e havia sido capturado nesse dia. Fora condenado à morte sumariamente por fuzilamento pela UNITA, condenação essa determinada pelo então Comandante Zau Puna, o número dois daquela Organização. Infelizmente essa condenação veio a cumprir-se, segundo vim a saber no terceiro dia após a nossa chegada. Tive uma pena imensa, mas não estava nas minhas mãos poder salvá-lo. Se por um lado eu já não era militar, por outro as minhas obrigações profissionais impediam-me de me envolver naquela luta, por não ser a minha, o que poderia pôr em risco todo um plano humanitário, que visava a salvação de milhares de vidas, sendo este objectivo o único que me importava e para que fora escolhido para cumprir .
Durante o período de duração da ponte aérea foram transportadas mais de cem mil pessoas e a maioria dos seus haveres. Não tínhamos material adequado e a maioria das caixas e malas --- muitas delas de dimensões exageradas, porque não havia outras --- eram colocadas dentro dos porões dos aviões a pulso, utilizando por vezes uma camioneta de caixa aberta para servir de pouso intercalar entre o chão e os porões dos aviões, sendo assistidos diariamente entre dez e trinta aviões .
Devido a grandes dificuldades de carregamento e ao pouco espaço de que os porões dos aviões dispunham foram-se aglomerando muitas dessas bagagens num barracão situado mesmo ao lado daquele que utilizávamos como sala improvisada de " Check-in ", instalações essas que nos foram cedidos pelo Aero Club do Huambo para esse fim. A essa aglomeração demos o " pomposo " nome de Montanha das Biquatas, dado o volume ser de tal monta, que chegava ao teto do barracão, bastante alto por sinal, dando a impressão de se tratar de uma montanha em que o castanho e o verde preponderavam sobre as outras cores existentes em pequeníssima quantidade .
Devido ao pouco pessoal de que dispúnhamos, fomos levados a contratar pessoal local só para os carregamentos de bagagens e apesar da quantidade do mesmo ser ainda insuficiente lá fomos cumprindo conforme podíamos os horários dos aviões, enchendo-os no máximo das suas capacidades. Aviões americanos e suíços intercalavam-se com os de nacionalidade portuguesa. A própria companhia aérea angolana --- naquela época denominava-se ainda DTA, sendo hoje denominada TAAG --- tinha a sua quota-parte na operação e o seu pessoal de terra passou em determinada altura e parcialmente a integrar o grupo TAP .
Quantas vezes comíamos como se de militares em campanha nos tratássemos. Em diversas ocasiões foi a nossa alimentação composta exclusivamente por rações de combate fornecidas pelo exército português ou por simples latas de conserva, que comíamos sobre os dois improvisados balcões de check-in existentes no dito barracão coberto a zinco e aí dormíamos por vezes alguns minutos com as cabeças sobre os braços cruzados nos tampos desses balcões, para depois, ainda ensonados, porque demasiado cansados, voltarmos ao trabalho extenuante, ajudados por um constante calor e alto índice de humidade, que no barracão sempre se fazia sentir fosse de noite fosse de dia. No barracão onde estava organizada a área de check-in havia funcionado o departamento de pára-quedismo do Aero Club e ainda se podiam ver alguns paraquedas pendurados numa vã tentativa de embelezamento daquele espaço deserto .
Houve uma altura em que estivemos durante cerca de três dias e três noites sem " pregar olho " e os nossos balcões de check-in serviram de encosto ao mesmo tempo a muitos do grupo, tal era o cansaço em que nos movíamos. Os aviões não se faziam esperar aterrando em catadupa .
Se por um lado havia necessidade de despachar os aviões devido a condicionalismos de ordem operacional e meteo --- os pesos possíveis de serem transportados nos aviões dependem das quantidades de carburante transportadas, da temperatura do ar, pressão atmosférica e outras condições meteorológicas, tornando-se importantíssima a altitude a que se encontra a pista de aterragem, situando-se aquela no centro do planalto do Huambo, o que impossibilitava o transporte de grandes quantidades a certas horas do dia ---, por outro lado havia a necessidade imperativa de fazer sair dali milhares de pessoas ameaçadas nas suas vidas e nos seus haveres, que esperavam impacientes o dia da partida e da sua saída daquele inferno .
Apesar de todos os contratempos, que sempre surgiram e não foram poucos, valeu bem a pena que todo o pessoal de bordo dos aviões tivesse dado o seu melhor no seu relacionamento com o pessoal de terra colaborando ao máximo e voando constantemente nos limites de segurança, embora não os ultra-passando como é óbvio, levando para fora do aeródromo do Huambo sempre o maior número de almas e bagagens possíveis de serem transportadas. Muitos desses aviões chegavam a levar no seu interior, para além das bagagens e dos passageiros muitos animais de estimação de todas as espécies e tamanhos e em quantidades excepcionais, mais parecendo por vezes pequenos jardins zoológicos voadores do que aviões de transporte de passageiros .
Esteve permanentemente em risco as vidas não só dos que ficavam, mas também dos que se encontravam nos aviões nos momentos de aterragem e descolagem. Nunca se sabia se algum guerrilheiro apontaria a sua arma automática ou alguma " bazuca " --- lança foguete --- para um dos aviões parqueados na " Placa " ou em movimento ascendente ou descendente ou ainda para os barracões atulhados de gente, que não tinham outro sitio onde ficar dia e noite e a dispararia sob o frequente efeito de álcool, pois a maioria dos guerrilheiros andava sempre bêbeda sem terem qualquer voz de comando, que os controlasse e os impedisse de fazer as maiores asneiras, que se poderá alguma vez imaginar .
As Forças Militares Portuguesas ainda aquarteladas na cidade --- CTLIS - Comando Territorial de Nova Lisboa ---, embora de fraquíssima capacidade operacional, deram-nos um prestimoso auxilio tanto em alimentação como também em algum material de que tínhamos necessidade, como por exemplo material sonoro, colchões para os passageiros, água engarrafada, rações de combate, leite em pó, tabaco a quinze Quanzas cada maço de AC, algum Whisky ( aí vulgarizado o seu consumo ), gelo, queijo e outros alimentos necessários à nossa manutenção. Lembro-me bem que um maço de AC era vendido na rua a mil e quinhentos Quanzas e era quando havia. Quantos maços dei a passageiros, que pouco mais tinham do que a roupa que traziam vestida sobre o corpo, não me recordo bem, mas posso assegurar que foram centenas. Por outro lado, água tónica e Gin haviam em abundância fornecidas pelas Forças Armadas Portuguesas, felizmente, pois nada há de melhor para combater preventivamente as febres palúdicas tropicais do que essas bebidas, devido à grande quantidade de Quinino que entra na sua composição, substituindo assim os habituais comprimidos de Daraprin ou Rezoquina,
que então escasseavam na cidade. Note-se, que tive a sorte de encontrar um familiar cumprindo o serviço militar no Huambo naquela altura, o Capitão Francisco Martins, e um outro grande amigo, o Capitão Centeno, que fora meu Comandante de Bateria, quando prestava serviço no exército, no RAL 3, em Évora, tendo com ele convivido mais tarde ( entre 1967 e 1970 ) durante a minha Comissão Militar em Angola. Ambos me prestaram grande apoio em tudo o que necessitava e por meu intermédio ao pessoal da TAP, que ali estava destacado. Outro tanto fez a Cruz Vermelha de Angola ao apoiar-nos com o seu auxilio médico ou medicamentoso, quando era chamada a prestar serviço a passageiros doentes ou crianças subnutridas, que ali existiam em grande quantidade ou até a nós próprios. Chegaram a ser tantos os doentes, que a Cruz Vermelha sentiu a necessidade de criar um posto de auxilio permanente dentro do próprio barracão onde funcionava o Check-in, montando-se inclusive nas suas traseiras uma cozinha de campanha para confeccionar comida a ser servida a quem dela necessitasse, especialmente leite e sopa. Ficou-se a dever esta acção humanitária ao incansável trabalho levado a cabo neste sentido pelo Oliveira Costa, que após uma semana de estadia substitui no Comando do Grupo TAP o senhor Balicha, em virtude deste só ter sido para ali destacado para pôr em funcionamento a Escala, voltando então a Luanda para as suas anteriores funções de Chefe de Escala, em virtude desta se encontrar a braços com tantos problemas como a nossa no Huambo, com a agravante de ser ali o centro de operações de todas as pontes aéreas de Angola para Lisboa .
Os efectivos militares portugueses eram, como foi dito, reduzidíssimos no Huambo pelo que a nossa segurança física era pouquíssima para não dizer nenhuma e muito menor era ainda a das pessoas que se preparavam para viajar. Aqui na Mãe Pátria poucos se deram conta disso e, ainda pelo contrário, tudo fizeram para denegrir a imagem real das pessoas, que se empenharam para conseguir levar a bom termo o trabalho para que foram indigitados sob a forma, é verdade, de voluntariado, acusando-as cobardemente das coisas mais inverosímeis, muitas vezes levadas pela sua própria falta de coragem em enfrentar estas situações ou até mesmo por simples ciúme de possíveis vãs glórias, que nos seus mesquinhos espíritos pudessem ser vislumbradas ou até ainda para afastar a atenção de pessoas responsáveis para os seus próprios actos pecaminosos .

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