O PRESO
O dia fugia-lhe através das frestas das janelas gradeadas. Era um preso como tantos outros, que por ali viam e ouviam, e só, o que se passava dentro da prisão. Para ele os dias simples haviam acabado .
Que havia feito para ali estar acorrentado ? E os outros ?
Cada um cometeu um erro . . . Força do destino . . . e o preso pensava :
" Que semelhança haverá em cada um de nós . . . em cada coisa que fizemos, para merecer o mesmo castigo . . . degredo ? . . . E lá fora ninguém houve os nossos gemidos . . . os nossos ais . . . Ninguém se lembra das nossas mulheres . . . dos nossos filhos . . . Que pensarão eles de nós, os que aqui estamos ? . . . E nós deles ? . . . É certo que nunca me lembrei disso, senão agora . . . Isso é verdade . . . Ninguém nos diz nada . . . Será que ainda vivem ? Nada sabemos . . . a não ser que estamos aqui,
acompanhados das paredes, das grades e do pouco mais que nos puseram . . . e ainda nos resta . . . "
E a vida não sorria para o preso. O ódio torturava-lhe o pensamento. Sentia o efeito do tempo, que há muito deixara de contar. Para ele já os dias tinham desaparecido. Quantos ? Não sabia. A razão, não lhe faltaria já ? E o preso falava com as grades, com o tosco banco e a suja enxovia da masmorra, em que havia muito tinha sido encarcerado. Falava até com a caneca da água ou a malga de comida deslavada, suculentada com o liquido sabujo da sopa . . . e o preso gemia encostado às grades de ferro, que o não deixavam transpor os sessenta passos, que o separavam da vida. Sentia-se inválido. Fora ele válido alguma vez ? . . . Um morto, em suma, já descarnado, sem sentimentos de orgulho, de honra ou de pudor, e as vestes . . . que vestes essas . . . quasi totalmente arrancadas pelo delírio, perdiam-se esfarrapadas entre os enormes buracos, e o preso continuava a pensar :
" . . . Os dias são para mim noites . . . come se elas existissem . . . e se existem, passam já sem eu dar por isso . . . Quantos anos, meses, dias, horas . . . minutos ou segundos já aqui passei ? Porquê ? . . . Porque me tiraram tudo o que tinha, até aquela corda que me servia de cinto ? . . . Por
quê ? . . . Porquê ? . . . Que direitos têm os homens de julgar uma coisa, de que só Deus tem esse direito ? Quanto tempo hei-de passar ainda, antes que me levem para a vala ? É o último reduto que me resta para me libertar destes malditos seres injusticeiros. Ah ! . . . Isso é ! . . . Que terei feito para que me matassem, deixando-me vivo, aos olhos da família ? . . . Já não te consegues mexer, pé ? . . . E tu, mão ? . . . Quantas vezes acariciaste cheia de rancor estas grades tuas companheiras ? . . . Quantas vezes bateste com os punhos ensanguentados nas paredes a demonstrar a tua revolta ? . . . Quantas ? . . . Dizei lá ! . . . Quantas ? . . . Quantas vezes notaste a ferrugem e a falta de tinta que as cobre ? . . . Já as águas que correm pelas imundas paredes te não são estranhas, lábios meus . . . Quantas vezes as sorveste para acalentar mais um ínfimo laivo de esperança ? . . . Fugir . . . Fugir . . . Fugir . . . Fugis, mas para onde ? . . . Para o meio desses inválidos . . . Talvez mais inválidos do que eu . . . Não ! . . . Não ! . . . Não vale a pena tanto trabalho para acabar por cair como eles sob o ódio de tantos infelizes como eu, que os vêem lá fora ainda mais presos do que eu . . . do que nós . . . arreigados a parvas idiotices, que lhes dirigem a vida como se fossem máquinas . . . E . . . não o serão,
porventura ? . . . Afinal ainda há tempo . . . Começo a acreditar que ainda me resta alguma coisa . . . o tempo . . . pois . . . o tempo para pensar . . . para pensar em algo que nem eu mesmo sei . . . "
E o preso continuava, assim, nestas cogitações, enquanto . . . . . . . . . . . . nas capas dos livros, que estavam em cima da mesa da secretária do Director da Penitenciária, envoltas por uma auréola de escárnio, se podiam ler estas palavras :
" . . . Livro dos condenados a prisão perpétua, por quererem viver na perpétua solidão . . . " . . . . . . . . .
Lisboa, 1967
( partes deste conto foram cortadas pela " Censura ", antes de ser publicado )
Em 1983 a Triologia foi publicada na integra nos EUA, no " Portuguese News " de New Bedford, tendo sido recebida imensa correspondência de louvor, após a sua publicação
Em 1983 a Triologia foi publicada na integra nos EUA, no " Portuguese News " de New Bedford, tendo sido recebida imensa correspondência de louvor, após a sua publicação
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