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Nota Prévia :

Este Blog destina-se exclusivamente à divulgação de trabalhos escritos por mim para meu prazer e daqueles que eventualmente estivessem interessados na sua leitura.

Felizmente, foram muitos os que se me dirigiram a pedir que divulgasse alguns dos meus trabalhos, especialmente os que mais me marcaram ao longo da minha vida, daí ter feito uma escolha selectiva de entre todos eles, muitos ficando de fora, naturalmente .

Foi por esse motivo que surgiu este Blog .

Muitos desses trabalhos já haviam sido publicados em periódicos e revistas da especialidade e não só, muitos deles além fronteiras ( EUA e BRASIL ), e alguns chegaram mesmo a ser galardoados em Concursos de Contos e Poesias e diversos Jogos Florais .

À medida em que forem inseridos neste Blog, tentarei informar quais os já anteriormente publicados, onde e quando e se tiverem sido galardoados, quais os prémios que lhes foram atribuidos e quais as Organizações envolvidas .

Espero que a memória não me falhe e os meus apontamentos não estejam incompletos.

Ericeira, 20 de Janeiro de 2011

Carlos Jorge Ivo da Silva

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O JOGO DA BOLA

Tinha os meus seis ou sete anos de idade .
Meus pais iam para a Ericeira passar um mesinho de veraneio. Estávamos em pleno Agosto. Como sempre, tanto eu como os meus irmãos levantámo-nos cedinho e descendo as escadas quase à vertical da casa da Dª. Germana, mesmo em frente ao " Jogo da Bola " e sobre a loja do Sr. Fino, num ápice ficámos sob as copas das vetustas árvores, que tão maravilhosamente engalanavam a empedrada área fronteira do Café Arcada .
Carregados de material para a pesca aos cabozes --- não eram mais do que uns sacos de plástico, dos primeiros que eu vi, e umas velhas facas, que a minha mãe sempre punha à nossa disposição nessas alturas ---, de uma pêra e vinte e cinco tostões para cada um, lá fomos pela rua Eduardo Burnay até à sua confluência com a Calçada da Baleia, que descemos meia a andar meia a correr .
Pelo ar corria um forte aroma característico do iodo, que nos entrava pelas narinas saborosamente, desobstruindo as fossas nasais, felizmente ainda pouco poluídas pelo ambiente .
Com facilidade relativa chegamos num ápice pela calçada norte à Praia do Sul, onde a " Banheirinha " se nos deparou com toda a sua beleza .
Dos lados do Hotel Turismo em duas pequenas prainhas alguns banhistas sentiam a frescura das leves ondas do mar, que se enrolavam na rebentação ali mesmo ao pé do esqueleto de uma antiga e pequena prancha de saltos, da qual ainda se podiam ver dois ferros já corroídos pelo mar, onde nos segurávamos para subir ao pequeno rochedo, que utilizávamos na falta da prancha, para saltarmos em mergulho na límpida e esverdeada água salina .
Do lado de cá, a extensa Praia do Sul convidava-nos a percorrê-la até ao seu fundo. Rochas, ainda não as havia à mostra como se vêem hoje. A areia branquinha polvilhava toda a praia, só havendo aqui ou ali um ou outro resto de alga, que o mar no seu vai e vem continuo atirava mansamente à praia durante as épocas de verão. Escusado será dizer, que as marés vivas tão características dos fins de Agosto ainda se não faziam sentir, dando ao ar a sua graça natural --- felizmente a praia ainda não era revestida a latas de coca-cola ou outras coisas quejandas --- .
Sandálias nas mãos, pequenos bonés brancos e azuis à marinheiro enterrados nas cabeças --- que minha mãe bastante cautelosa nos pedia que sempre mantivéssemos postos, não fosse o aparentemente tímido sol criar-nos problemas de insolação, como já em tempos me havia acontecido, para grande preocupação de toda a família ---, camisetas brancas de alças sobre calções de caqui esverdeado, toa-lhas multicolores sobre os ombros e os pés descalços marcando a areia molhada da borda da água formavam o conjunto dos três pequenos encaminhando-se para as rochas, que formavam o " Muro Vermelho ", na ponta sul da praia .
À medida que íamos caminhando à beira mar, ficavam para trás as duas filas de barracas feitas de grosso linho decorado com tiras azuis e brancas e uma de toldos fabricados com o mesmo pano, assentes sobre varões de madeira enterrados na areia. Perto desses prefabricados protectores solares lá estavam os banhistas apanhando o matinal sol, transformando os seus brancos corpos em negros tições ou dando às peles o colorido das lagostas e por vezes um ardor natural de queimaduras acidentais, talvez sob os olhares atentos do Gramanha ou do Zé da Lúcia e do Simão, os banheiros mais conhecidos da praia .
Alcançando o nosso destino, aí tirámos os " caquis ", que deixámos em monte juntamente com as sandálias, os bonés, as camisetas e as toalhas sobre areia menos húmida, e em " modernos " --- para a época --- calções pretos, onde um cinto branco dava um certo ar de realce e de beleza, atirámo-nos pela água dentro, nadando só com uma mão e com o referido saco na outra. Chegados junto às escuras e vulcânicas rochas, emaranhados montículos de verduras e castanhos de tons variados, lapas ou mexilhões e, por aqui e por ali, pequenos enclaves cobertos de burriés e ouriços, que picavam com quantos picos tinham quem inadvertidamente lhes tocasse, faziam-se observar numa amalgama de vida sob intensa luz naquela manhã de Agosto, salpicados a todo o momento pela água salgada, aconchegando levemente os rochedos escultoricamente plurirecortados .
O céu azul toldava as nossas cabeças, enquanto pequenas e distraídas, porque bem alimentadas, gaivotas pairavam no ar como se fossem papagaios de papel, aos quais de tempos a tempos damos um pouco de linha para puxarmos depois, provocando-lhes idas e retrocessos em encantadore movimentos, que tanta alegria provocam nos mais pequeninos e aos grandes não deixam de causar uma certa nostalgia ao lembrarem-se dos seus tempos de meninos .
A primeira coisa a fazer foi procurar nas brechas dos ouriçados pedregulhos pequenos montes de areia, transformados num género de cimento e cobertos de pequeníssimos furos, bocas de acesso a canais por onde a água do mar entrava e saía sem os destruir. Era neles que iríamos encontrar os cabozes negros e castanho-avermelhados, que quando em grandes quantidades servem para fazer uma belíssima caldeirada tão do agrado dos amantes do mar e da sua fauna .
Esgravato aqui, perfuração ali com a ajuda de um seixo rolado, para dar mais ímpeto ao movimento compressor, lá púnhamos a descoberto a loca de um ou outro caboz, que pouco depois se debatia entre os nossos dedos até entrar na boca do saquito cheio de água, para manter vivos os peixinhos o mais tempo possível .
Quando aparecia uma lapa corpulenta, nem essa escapava ao seu destino, logo mergulhando no saco num abrir e fechar de olhos ou um mexilhão um bocadinho maior do que o normal. É certo, que algumas vezes caiam para dentro de água, mas para que não escapassem, de olhos bem abertos e boca do saco fechada mergulhávamos para os ir buscar, a fim de não ser dado por mal empregue o tempo gasto a levantá-los da rocha. O mesmo acontecia com os búzios, as conchinhas, os grandes burriés e os mais corpulentos ouriços, que ainda nessa época pululavam em grande quantidade nos mais variados recantos da Praia do Sul .
Sacos cheios, já bastamente cansados e após troca de sinais entre nós, como que a assentarmos que já chegava, lá voltámos à areia onde avaliámos então a nossa pescaria. Não fora má de todo, confessemos .
Enxugámo-nos com as toalhas, pusemos as camisetas brancas e os bonés de marinheiro e regressámos com o mesmo andamento, que tínhamos levado, trazendo às costas o resto da tralha até à zona da " Banheirinha ", onde nos voltámos a despir, determinados a dar umas boas braçadas --- desta vez não levamos as nossas bóias feitas de câmaras de ar, que foram pertença das rodas de um " Austin 10 " cor de café com leite, que o meu pai nos tinha arranjado por já não servirem --- nas águas muito pouco profundas daquela piscina natural, limitada a norte pelas duas prainhas do Hotel, pelo sul por dois grandes rochedos, pelo oeste por um entrelaçado de pequenas rochas, que formavam uma barreira separadora do mar profundo, e pelo leste pela finíssima e agradável areia da praia, que separava o mar das escarpadas falésias sustentadoras dos " Jardins do Burnay ", onde tantas vezes íamos brincar, subindo uma majestosa escadaria toda encantadoramente ornamentada de pequenas conchas e pedrinhas, que lhe dava uma beleza impressionante --- que pena estarem hoje esses jardins totalmente destruídos não só pelo tempo, mas também pelos homens num total e desprezível abandono, numa atitude de falso modernismo --- .
Estivemos algumas horas dentro de água e após termos comido as pêras reservadas para essa ocasião esperámos a chegada da mulher dos bolos --- talvez a Dona Leontina ---, que toda vestida de branco com uma caixa pintada com a mesma cor à cabeça apregoava bolos bem fresquinhos, especialmente os " pastéis de nata " e os " fofos " --- pão de ló recheado ---, que a fábrica do Sr. João da Lindinha sempre produzia e era o gáudio de todos os veraneantes na Ericeira em época balnear. Só mais tarde começaram a aparecer gelados à venda. Ainda me recordo de uma maquineta feita com uma espécie de cilha em madeira com fundo fixo e tampa móvel furada ao centro, com paredes duplas, entre as quais se metia gelo, onde um eixo central com duas pás estava ligado a uma manivela saída do furo da tampa, que manualmente se fazia rodar dentro de uma lata com uma mistura inicialmente liquida à base de chocolate ou baunilha e leite e se tornaria, à custa de muito esforço, como produto acabado, num magnifico gelado. Custavam os gelados nessa altura cinco ou dez tostões conforme o tamanho e eram francamente saborosos, note-se, e menos prejudiciais à saúde do que os de hoje .
Acabada a banhoca de mar, lá vínhamos espavoridos de fome calçada acima com os sacos às costas, admirando mesmo que levemente os interessantíssimos cactos de piteira e chorões vermelhos ou amarelos plantados nas bermas .
Chegados a casa, lá Ía toda a pescaria para dentro de um alguidar, onde por qualidades era separada e as partes destinadas à lancharada eram imediatamente preparadas. A minha mãe achava sempre uma certa piada a essas coisas, preparando-nos deliciosos petiscos com o que apanhávamos, desde a dita caldeirada até ao arroz de lapas, que após uma pequena fervura nos entretínhamos a tirar o fio de areia, que têm sempre no seu interior, antes de serem misturadas com o arroz. Os ouriços eram cozidos e o seu coralífero interior era guardado para o final do repasto juntamente com os burriés e os pequenos mexilhões --- que nos não aventurávamos a ir buscar dos grandes, pois o mar não era para brincadeiras e estavam longe ---. Eram petiscos " de se lhe tirar o chapéu " --- e aquele aroma sempre delicioso do iodo ficava a pairar pelas divisões da casa numa demonstração do apetitoso desejo de quem o sentia --- .
Abancados à mesa da sala de jantar virada para o Jogo da Bola comemos o almoço, que nos foi posto no prato após um excelente banho de chuveiro com água doce. Depois . . . uma sestazinha obrigatória e reconfortante .
Lá para a tarde saímos a brincar no Jogo da Bola, o centro da " reunião social " de toda a criançada veraneante --- e aí grandes amizades se criaram para toda a vida ---. Por volta das cinco horas da tarde lá reentrámos em casa com mais um ou dois amigos, para petiscar a nossa pescaria --- serviam muitas vezes estes petiscos de jantar antecipado ---. Depois, ainda não se fazia sentir o lusco-fusco da tarde amena, lá voltávamos nós para o Jogo da Bola, onde a " Cabra Cega ", o " Mata " ou os " Cinco Cantinhos " e a “ Malhadinha " --- que se joga com uma pedra e riscos no chão feitos com giz ou pedaços de calcário, formando quadrados sobre os quais se saltava ao " cochinho " e lhe chamam hoje a " Macaca " ou a " Sirumba " --- faziam as nossas delicias juntamente com as rodinhas, que sempre se dançavam, como o " Giroflé ", a " Loja do Mestre André " ou a " Machadinha " .
Caía, então, o sol a ocidente e uma infinidade de bandos de pardais vinha acoitar-se nas copas das árvores num ensurdecedor chilreio. O barulho das crianças misturava-se com o das aves numa perfeita simbiose, enquanto os mais adultos sentados na esplanada do " Café Salvador " protegiam de relance a sua pequenada saboreando ao mesmo tempo o seu capilé fresquinho, que na época estava muito na moda, ou comiam no João da Lindinha --- " Casa das Cavacas " --- umas saborosas e açucaradas cavacas, que punham francamente em causa a primazia social das tão propaladas cavacas das Caldas da Rainha. Alguns de entre os mais velhos iam para a Sala de Jogos situada no andar superior do Café Arcada jogar ténis de mesa --- ping-pong --- ou entreter-se nas " Slot-Machines " --- cada puxadela na alavanca era cinco tostões, mas às vezes dava " Jack-Pot " e podia-se então ir brincar junto à gaiola de encantadoras aves canoras ou ainda andar de patins no " Parque de Santa Marta ", cuja receita de entrada sempre foi paga para manutenção e asseio daquela área de lazer e
descanso espiritual --- ou Ía para os Cafés " Salvador " e " Morais " jogar bilhar --- por curiosidade, foi no primeiro andar do Café " Salvador ", que aprendi a jogar bilhar com uma mocinha um pouco mais velha do que eu e que jogava brilhantemente. Pelo menos foi com essa ideia que fiquei desde esse tempo de criança ---. Os adultos do sexo masculino, esses, entretinham-se em Jogos de " Canasta ", " King " ou " Bridge " em casas particulares ou na adega do Café Morais, ou nas petiscadas pelas diversas " tascas " da Ericeira onde as navalhinhas e os camarões pequeninos a par de uns queijinhos saloios regados com um óptimo e afamado " tintol regional tipo carrascão " --- tasca que não tivesse bom tintol estava sempre vazia e não vendia o vinho que tinha --- faziam " papinho " a intermináveis conversas de assuntos os mais variados, especialmente na antiga " Parreirinha ", no " Caetano ", no " Afonso ", na " Andorinha ", no " Jusué ", no " Alberto Ferrador ", no " Xico Peidas " ou no " Zé de Barros " --- perdoem-me se me esqueci de outros, mas era muito pequeno e não as frequentava, a não ser a " Parreirinha ", onde o meu pai me levava com os meus irmãos a comer uma sandezinha de queijo saloio e meio copinho muito pequenino de vinho tinto com gasosa, o que nos dava um prazer imenso, pois nos fazia sentir adultos entre adultos, ao participar-mos em reuniões, que só a eles estavam reservadas, como era natural --- .
Mas as tardes sempre acabavam no Jogo da Bola, onde a Banda da Ericeira por vezes tocava ou se fazia uma " Quermesse " de apoio à Santa Casa da Misericórdia. Dessas Quermesses tenho belas recordações, pois me entretinham muito e aos petizes do meu tempo, que andavam à roda dos balcões a jogar à " Apanhada " ou se entretiam a admirar as peças expostas, que saíam àqueles que lá compravam as rifas de papeis multicolores muito enroladinhos e dobrados a meio em cestinhos de vime tradicionais. Ora umas panelas, uma lata de conserva, um prato, um paliteiro de louça, um lenço de assoar, um jarro ora qualquer outra " bugiganga " era motivo de parodial galhofa entre os compradores de rifinhas e as meninas e senhoras, que sempre as transportavam nos ditos cestinhos .
Noutras alturas, grandes grupos de rapazes e raparigas subiam passeando a rua Eduardo Burnay até à " Sala de Visitas " num passeio cheio de alegria, cantando e saltando, mas sem o sentido actual da vontade de destruir, que os nossos jovens de hoje teimam infelizmente em fazer prevalecer sob o olhar apático e por vezes demasiado condescendente das autoridades. A meio desses passeios parava-se para admirar o " Galeão ", um dos mais belos restaurantes e sala de baile, que tive o prazer de ver até hoje por estas redondezas. Não quero dizer que actualmente o restaurante " César " não tenha condições idênticas às do " Galeão " daquela época, mas os tempos eram outros. Nele se faziam os bailes de Carnaval ou Passagens de Ano magníficos. Eram sempre abrilhantados por excelentes orquestras compostas por músicos divinais, não havendo horas para parar, pois os próprios músicos, porque tocavam mais por amor à arte que ao vencimento que auferiam, se encarregavam de que assim acontecesse, sob a batuta magistral do insigne Mafrense Francisco Alves Gato .
É claro que no Carnaval os bailes do " Casino " e do " Grémio " também chamavam a atenção dos veraneantes e aí também eram de " arromba ", mas em épocas diferentes. Havia, de certa forma, uma classificação natural nos extractos sociais e os menos favorecidos também tinham os seus divertimentos como os bailes realizados no " Carvoeiro " --- no " Salão Moderno " --- também designados por " Bailes das Sopeiras " --- onde indivíduos de classe social mais elevada se vestiam mais pobremente para poderem ter aceitação, pois caso contrário não dançavam --- .
Durante as Festas dos Santos Populares também havia os bailes da " Praça ", sucedendo a mesma coisa que nos bailes do " Carvoeiro " .
Com o cair da noite as pessoas iam regressando a suas casas, esperando que no dia seguinte não houvesse neblina, que muitas vezes se fazia e se continua ainda a fazer sentir nesta época do ano .
Eu e os meus irmãos lá voltámos a penates. O dia seguinte estava predestinado a ser igual ao anterior, mas sempre nos dava o prazer a vida sã que levávamos .
Dá saudades, pois dá. E é por tudo isto que gostaria de ver voltar a Ericeira aos tempos em que eu era menino e moço, onde nos divertíamos vivendo intensamente uma alegre e não menos pacifica juventude, onde o " Jogo da Bola " era ao fim e ao cabo o ponto de reunião da nossa sociedade, que já não volta .
Ericeira, 1991

( Texto apresentado a concurso aos 2ºs. Jogos Florais da Liga dos Amigos da Ericeira em 1991 e vencedor destes Jogos na categoria de " CONTOS E NARRATIVAS " )

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