As picadas ficam sempre intransitáveis devido às chuvas, que na sua época são intensas, tudo alagando e tudo destruindo, deixando-nos sem possibilidades de reabastecimentos. Nesses casos últimos socorriamo-nos das nossas reservas de caça, pois a zona onde me encontrava era maravilhosamente rica de toda a espécie de animais, desde a palanca à hiena, do leão ao macaco e do porco espinho ao javali cinzento de bossa e ao " burro do mato " ( tipo de impala ), não esquecendo a pacaça que, essa sim, era a nossa principal fonte de alimentação animal --- raramente se matavam palancas, pois, embora a carne fosse muito saborosa, eram peças pequenas, cuja carne rapidamente desaparecia no fundo das panelas dos ranchos e havia por esse motivo necessidade de apanhar peças maiores e mais rentáveis . . .
O meu gosto por animais --- vivos, diga-se de passagem --- era tanto, que cheguei a ter para além do meu fiel " Côté ", uma Carraceira --- ave branca extremamente meiga e dócil, que consegue conviver com o ser humano sem dele sentir medo, e me fazia as minhas delicias, pois vinha ao meu chamamento andando completamente solta pelo aquartelamento --- e duas hienas de estimação, que infelizmente morreram, embora não fosse por falta de cuidados ou de alimentação, mas talvez por alimentação a mais uma delas e a outra por ter caído de um terceiro andar de um prédio em Luanda, quando já não me pertencia por a ter oferecido a um camarada amigo, que m'a pediu insistentemente e a quem não pude dizer " Não ", para não falar de uma jibóia, que passou a vida dentro de um bidão comendo galinhas até que uma bala acabou com ela só restando a pele que trouxe comigo depois de devidamente seca e tratada --- foi o que se podia chamar uma pele tratada a creme de galinhas --- . . .
Apesar de todas as contrariedades devido à situação de guerra, que coisa maravilhosa era ver e sentir a Natureza nesta Terra Africana onde, por vezes, três ou quatro palancas saltavam em fila indiana, mostrando verdadeiros voos, cheias de ligeireza e graciosidade, ou imensas nuvens compostas de milhões de pássaros de onde se destacavam as " Viúvas " com as suas negras caudas compridas e os seus bicos vermelhos, cuja fisionomia mais se assemelha a um pardal do que a um corvo, a cuja família pertence, nuvens essas que, sobrevoando as nossas cabeças a baixa altitude em voo rasante, enchiam os ares com alegres e estridentes pios .
. . . E lá continuamos a nossa viagem para S. Salvador, para nos reabastecermos, pois esta era a única maneira possível . . . e o objectivo imediato da coluna .
. . . Mas . . . olhemos agora por entre as nuvens . . .
O " pôr-do-sol " nesta região é digno de ser admirado .
Um vermelho-arroxeado começou a tingir as nuvens no céu. Por entre elas o sol declinava-se no horizonte. Num momento todo o céu se transformou em fogo. Uma enorme bola vermelha-laranja descia lá longe . . .
Depois . . . à medida que o sol se ia escondendo, o céu parecia mais vivo de cores. Sangue raiado de amarelo, verde e azul anilado eram as cores mais preponderantes que encaixilhavam os topos dos montes selváticos e caprichosos. O sol desapareceu totalmente para lá da Serra da Canga. As nuvens baixaram sobre os vales próximos e o dia quente e asfixiante deu lugar à noite húmida e fria, repleta de escuridão .
. . . Chegámos enfim a S. Salvador, onde pernoitámos, depois de enchermos as viaturas com o máximo possível de reabastecimentos no Pelotão de Intendência e aí as deixarmos resguardadas para, na manhã seguinte, regressarmos aos nossos aquartelamentos da Mamarrosa, Canga, M'poso, Luvo e Magina .
Tudo acabou neste dia, mas na manhã seguinte tudo recomeçou com o reaparecimento do astro-rei entre o estranho manto de cacimbo, que sempre cobre na noite escura os vales da Terra Africana . . .
Mamarrosa ( Norte de Angola ), 1968
1º. Prémio de Contos e Narrativas nos Jogos Florais da Casa dos Açores no Rio de Janeiro, Brasil em 1977
Publicada no " Portuguese News " de Boston em Março de 1983
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