SEJAM BEM VINDOS A ESTE BLOG

Nota Prévia :

Este Blog destina-se exclusivamente à divulgação de trabalhos escritos por mim para meu prazer e daqueles que eventualmente estivessem interessados na sua leitura.

Felizmente, foram muitos os que se me dirigiram a pedir que divulgasse alguns dos meus trabalhos, especialmente os que mais me marcaram ao longo da minha vida, daí ter feito uma escolha selectiva de entre todos eles, muitos ficando de fora, naturalmente .

Foi por esse motivo que surgiu este Blog .

Muitos desses trabalhos já haviam sido publicados em periódicos e revistas da especialidade e não só, muitos deles além fronteiras ( EUA e BRASIL ), e alguns chegaram mesmo a ser galardoados em Concursos de Contos e Poesias e diversos Jogos Florais .

À medida em que forem inseridos neste Blog, tentarei informar quais os já anteriormente publicados, onde e quando e se tiverem sido galardoados, quais os prémios que lhes foram atribuidos e quais as Organizações envolvidas .

Espero que a memória não me falhe e os meus apontamentos não estejam incompletos.

Ericeira, 20 de Janeiro de 2011

Carlos Jorge Ivo da Silva

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

CARTA ABERTA AOS MEUS CONTERRÂNEOS


Ao Senhor Director do Jornal

" O CARRILHÃO "

Meu caro Senhor

Venho por este meio solicitar os bons ofícios de V.ª. EXª., no sentido de, caso julgue oportuno e conveniente, determinar que seja publicada a presente carta, pois a mesma se encontra aberta a todos os meus conterrâneos de boa memória, com o desejo sincero de que nunca a percam e aos que a não têm tão fresca, servirá a mesma para a avivar, se tanto me for permitido pelas circunstâncias .
Muitos anos passaram desde que Mafra ouviu falar de mim, não só pelas minhas muitas traquinices, mas também por alguns contos e poesias publicados em anteriores periódicos, que fizeram e fazem parte da história da minha terra .
Sem dúvida, sou mais um dos filhos --- dos muitos filhos --- que, não a desprezando, a abandonaram, não " para tão longes terras ", como dizia Bernardim Ribeiro na " Menina e Moça ", mas para a " Capital do Reino " como antes de 1910 se dizia então. Condicionalismos vários o exigiram a todos nós . . .
Como num acto de contrição, procuro absorver em mim mesmo o que ainda me resta de uma agradável lembrança da minha juventude, lembrança essa em que tantos amigos entram, pois que comigo passaram a sua meninice agarrados num só tempo à terra que nos viu nascer .
Lembro-me frequentemente ora deste ora daquele, ora desta ora daquela e sinto realmente não uma melancólica tristeza, como seria de esperar, mas uma imensa alegria por verificar não haver em mim tão grande falha de memória, ainda .
Aquela Tapada . . . Aquela Tapada . . .
E aqueles Jardins do Cerco e da Alameda sempre belos e majestosos .
Quantas histórias, quantos contos verdadeiros passaram por nós, simples intervenientes de um pedacinho da história da nossa Vila, ouvindo o repicar dos sinos do carrilhão sul, tocados pelos punhos do meu Tio Xico Gato .
Quanta saudade . . .
Nós passamos e as histórias ficam . . .
Quem não se lembra dos que comigo conviveram da história dos Galos das torres do Convento ? Podeis rir-vos à vossa vontade. A mim também me dá vontade de rir . . . E creiam que não fui sozinho. Posso garantir-vos . . . mas eu é que paguei as favas .
Certo dia em Angola, mais propriamente em Luanda, ouvi uma voz dizendo atrás de mim : " Lá vai o nosso Alferes que rifou os galos da torre do Convento de Mafra ". Olhei para de onde vinha a voz e, francamente, não reconheci ninguém. Só cerca de vinte anos mais tarde vim a saber quem tinha falado naquela ocasião em Luanda .
Quem não se lembra de ter tomado banhos no chafariz junto ao Canal em tardes fartas de sol ?
E os " carrinhos de rolamentos " descendo a rua principal até à cadeia ? A árvore grande ainda lá está em frente à porta principal . . . Era uma boa fonte de receita. Alugávamo-los a dois tostões a corrida, mas quem Ia neles tinha que os trazer para cima outra vez até ao Largo da Boa Vista. E as calças rotas de alguns era motivo, por vezes, para outro tipo de pagamento . . . A paciência da Esposa do Carcereiro resolvia-nos o problema . . . Cosia-nos as calças para ninguém saber . . . mas tudo se sabia .
E os concursos de descida em bicicleta feitos pelo Alua no Jardim da Alameda --- quase a pique --- ? Algumas escoriações, mas nada partido, e . . . lá estava ele pronto para nova corrida só por cinco tostões .
Quem não se lembra do Toninho Manel ou do Acácio ? Metiam medo a alguns . . . Nada de passar ao Beco das Curvas nem ir sozinho para os lados do Bairro e muito menos para os lados do Hospital Velho. Para aí só em serviço, a colocar uns agrafos nas cabeças partidas. Coitada da Maria dos Reis. Que paciência para nos aturar . . . E as pedras acertavam quase sempre --- eu que o diga --- .
E o tiro aos patos, Mané ? E as serenatas na escadaria lateral Sul do Convento com o Xico Zé a tocar ? Felizmente que ainda o faz, hoje decerto com muito maior mestria, pois a evolução é própria do tempo, quando se quer e . . . " Filho de peixe sabe nadar . . . "
E os discursos do Nito, o " Celebérrimo Campeão de matraquilhos ", sempre apoiado pelo Zé Filipe e pelo Rui Afonso ? A sua filosofia de vida é motivo de óptima recordação. Hoje deve ter virado Orientalista em terreno nipónico. E as guerras do Bairro, do Canal, da Vila Velha e da Tapada ? Que guerras essas . . . O Xuga podia-nos contar algumas peripécias, mesmo sem sapatos perdidos em campo de batalha. Guerras com bandeiras e tudo . . . Não foi verdade José Eduardo ? E vós Sereno, Márinho Manel, Rogério, Carvalho, que vivestes tão intensamente esses momentos como eu, o que tendes para dizer ?
E tu, Olavo Martins e tu Fernando Manuel Paulino ?
Vocês lembram-se, Zé Nicolau e Hernâni, quando o Xico Zé trocou uma batalha por uma laranja lá para os lados da Vila Velha ?
Ainda existiam os três pinheiros e a lagoa do Moinho, onde o Xico ia ficando, se não fosse o farto cabelo que ainda tem hoje. Quantos anos já passaram . . .
Quem não se lembra dos bailes da Pinhata no Clube com Pitaia, Luizinho, Alexandre, Quim Zé, Solnado e Companhia ? E o Jorge Lima no trompete, que a todos extasiava, porque sublime ?
E as festas no Jardim do Cerco com o Baile das Chitas no Campo das Merendas, que nós aproveitávamos para ir às Avelãs e às castanhas. De avelãs e castanhas sabiam o Renato Júlio, o Zé Eduardo e o Huguinho Marques. Era nessa altura que se fazia um armistício entre todos os grupos da Vila, mas de pouca duração . . . fazendo lembrar os tempos das sementeiras e das colheitas em época medieval .
E as quermesses junto ao Poço da Nora ? Será que foi por isso que fecharam a boca do poço ? Nessa altura fechavam a boca a " muita coisa " . . .
Reservo lugar especial para as Escolas Velha e Nova e para o Externato, que nos tocaram a todos bem fundo, pois foi nesses lugares, que nos iniciámos não só intelectualmente como também fisicamente. Hoje, meninos e meninas brincam nos mesmos recreios. Naquela altura, os Professores Almeida,
Mauro e Dª. Maria Joana não nos permitiam isso. Os latinos já diziam" O TEMPORA, O MORES " --- Noutros tempos, os costumes eram outros ---. Eles não tinham a culpa. A lei era essa. Compreenda-se .
Arcos, ganchetas, bilas, piões, arcos e flechas, fisgas e bombas de pólvora de pedreira e rastilhos --- o Xico Zé que o diga --- eram os nossos instrumentos de brincadeira, mas nunca morreu ninguém, felizmente, o que traria graves problemas à Dª. Rosaria, mulher do Ti Joaquim Manel .
Sereno, Mané Queluz, Balhéu, Rui Oliveira --- neto da fornecedora ---, Rogério Caracol, Mané Ivo da Silva, qual foi a desculpa que arranjaram para uns vidros partidos da Escola Nova ? Foi treino ?
E as bilharadas no Rioma Velho, no Esplanada e no Estrela ? E as grandes petiscadas no Custódio, na Perdiz Branca, na Amália, no Escondidinho e no Macaco Cinzento ? Bons tempos esses . . . E os lanches com coquinhos, pastéis de feijão e areias do Café Havanesa ? Houve quem pagasse um bom lanche sem saber como nem porquê . . . Recordas-te Anterinho, de teu pai te ter contado ?
E os passeios a pé pela Tapada à procura de chumbo nas Carreiras de Tiro Grande e Pequena e os jogos de futebol entre solteiros e casados, que íamos ver e tanto nos entusiasmava ?
Lembras-te Saul, não havia canto que não conhecêssemos nem buraco que não aprofundássemos à procura de cobra ou lagarto nem lagoa onde não tomássemos bons banhos e onde não caçássemos à fisga rãs para fritar com azeite e sal ?
E os peixes do Tanque da Horta dos Frades e os do Jardim do Cerco para assar ? . . . Mesmo dourados também serviam . . . Naquela época não fazia mal . . . Só, que éramos corridos pela tropa e pelos guardas do Jardim do Cerco com uns bons tabefes de vez em quando . . . Hoje, damos-lhes inteira razão, claro. Mas . . . naquela época . . . Havia também quem se dedicasse a grelhar ratinhos. Era uma menina, por sinal. Outras, como a Guida, a Nia, a Zeca, a Gina e outras dedicavam-se a fazer bolos para a " malta " com açúcar mascavado --- daquele que davam aos cavalos --- e que os remontistas nos davam para que os deixássemos em paz ou que às vezes conseguíamos surripiar, quando eles não atendiam o nosso pedido . . . Como se os remontistas não soubessem e não fizessem vista grossa às traquinices dos miúdos do meu tempo .
Lembram-se da ladeira ? Quantos pares de sapatos gastámos aí para irmos para o Externato ? . . .
E as festas do Carnaval com os conhecidos assaltos ? E o Tio Xico sempre, sempre ele a animar a festa da pequenada --- rodeado pelo Tico-Tico e pela Tica-Nanica --- nunca se mostrando enfadado. Pelo contrário, o Tio estava sempre alegre e sorridente, procurando compreender profundamente os sentimentos idos na alma de cada uma das crianças .
E a paciência da minha Mãe, da Tia Estela, da Tia Irene, da Tia Branca, da Elisa, da Abilia, da Dª. Rosa do Sebastião e de tantas outras pessoas, que aturavam esses miúdos rebeldes ?
E as fogueiras nas festas populares realizadas por iniciativa da Elisa, só para manter os miúdos alegremente ocupados com tarefas as mais diversas . . . e depois lá vinha o grande dia da fogueira, ou antes, a grande noite, que a todos encantava . . .
Tantas paródias . . . Tantos momentos alegres . . .
Nem sempre as saudades são levadas pelo vento. Somos nós que fazemos com que o vento as leve, se o deixarmos. E isso é próprio da minha Vila --- A minha Terra era feita de uma Tapada, de um Convento, duas ruas e muito vento --- .
Sem dúvida, a vida é feita de dois dias. Será agora que vou começar a gozar o primeiro dia ? Ou o meu primeiro dia foi na realidade a minha infância ?
Há bem pouco tempo li um livro de Henry Miller : " Viragem aos oitenta anos " e fiquei estupefacto pela lucidez e visão daquele homem de oitenta anos, cuja filosofia de vida ultrapassava em muito qualquer livre pensador com características anarquistas, no sentido real da palavra. Fez seu o lema que era nosso, na nossa meninice :
" Tristezas não pagam dividas " . . .
E se eu devo algo à Terra que me viu nascer, é hora de começar a saldar a minha divida, pensando nela, hoje mais maduramente, apesar de ter metade dos anos do protagonista do livro de Henry Miller, e não tão " " como António Nobre na Praia da Boa Nova, lá para os lados do Porto .
Escrevi mais alguns contos e poemas e terei o prazer de os enviar a " O CARRILHÃO ", para que sejam publicados, se for possível. A pouco e pouco o farei.
Sou Saloio e desejo firmemente continuar a sê-lo, mantendo os laços que me unem à terra dos Gatos, dos Rezinas, dos Monteiros, dos Machados, dos Lucas, dos Medeiros, dos Britos, dos Ricas, dos Galrãos, dos Cristovãos, dos Godinhos, dos Alves, dos Assunçãos, dos Esteves, dos Batatichas, dos Silvas, dos Caracois, dos Jacintos, dos Rolos, dos Marques, dos Bicho Beatriz, dos Oliveiras, dos Andrades, dos Paulinos, dos Carvalhos, dos Rolins, dos Simões do Paço, dos Valentes, dos Alcântaras, dos Folques, dos Abilios, dos Rodrigues Mendes, dos Bosiferos, dos Taveiras, dos Venenos, dos Pimentel, dos Militões, dos Moscas, dos Camochos, dos Dias, dos Queluz e de tantos outros amigos de meus pais e do resto da família Ivo da Silva, que sempre nos acarinharam ao longo do nosso crescimento e que realmente nos ensinaram a viver, dando e recebendo amor que, isso sim, me dá saudade imensa e me enche de alegria quando o recordo, pois é exactamente a isso que eu chamo " Tradição " .
Crianças que não fazem tropelias não são crianças. São adultos com corpos de criança, mas a culpa é de alguns adultos por os não deixarem ser crianças. Isso não nos sucedeu . . .
Em cada um de nós há sempre um pouco de criança. Deixai vir acima esse pouco de criança que ainda vos resta e podereis ter a certeza, ao terminar a leitura desta minha missiva, de ter vivido um pouco mais, rejuvenescendo em paz. Quanto aos saloios diria José Mário Paulo Freire no seu livro " O SALOIO " :
" . . . É inerente ao saloio uma boa dose de estoicismo em si próprio num apego profundo à Terra que o viu nascer . . . ", e eu concordo com ele, plenamente. Já que tantos por aí fora falam em " RAIZES ", não será hora de voltarmos às nossas ?
Para tanto deixo esse encargo ao José Eduardo Medeiros e ao Xico Zé Gato, ambos lutadores acérrimos pela unificação dos saloios, não política, entenda--se, mas na sua identidade inerente e própria, que os distingue dos outros elementos étnicos, que povoam este nosso Portugal. Assim o tentou Paulo Freire, dentro de uma filosofia de amor e compreensão, muito longe de ser fácil de pôr em prática, mas urgente que assim seja .
A esse mesmo amor e compreensão, que nos uniu na nossa juventude e se prolongou até hoje, alimentados nos convívios anuais dos Antigos Alunos das Escolas Velha e Nova e do Externato das minhas infância e adolescência .
Conseguirão ? Assim o desejo e espero .
Será que nos poderemos um dia juntar todos nas Escadarias do Convento contando histórias da nossa infância ou ouvir de novo a Luizinha Medeiros declamando no Cine-Teatro de Mafra poemas de José Régio --- " Poemas de Deus e do Diabo " --- ou voltar a lembrar as récitas organizadas pela Sr.ª. Dª. Maria Manuela Paulino, Sr. Bé Rezina, Tio Xico Gato, Sr. Ernesto Pimentel, etc. . . . etc. . . . ?
Já é altura de se fazer Justiça, mesmo que para isso haja necessidade de se ler novamente a " REPÚBLICA " de Platão .
Aqueles que fizeram Mafra --- e felizmente foram tantos e tão bons como os dos Cometas --- que estejam " PRESENTES " e a Eles seja prestada a devida homenagem .
Assim me despeço de todos vós, por hoje, com um forte abraço repleto de amor, paz e compreensão, deixando infelizmente para trás muitas histórias da minha infância, que ainda um dia vos lembrarei .
E a Vós, Senhor Director de " O CARRILHÃO ", os meus mais afectuosos cumprimentos, esperando que não pare esse magnifico periódico, pedindo a todos os colaboradores, que continuem essa obra em prol dessa nossa Vila de Mafra e seu Concelho, que tanto prezo, e da qual tantos se vão esquecendo e outros, como diria Camões: " . . . Se vão da lei da Morte libertando . . . "
Atentamente
Carlos Jorge Ivo da Silva

Lisboa, 10 de Dezembro de 1985

Publicada integralmente no Jornal "O CARRILHÃO" na rubrica "CARTAS AO DIRECTOR" em 15.12.1985

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