LIBERTAÇÃO
Passeava-se entre a folhagem de um jardim uma mulher, olhando o mar lá em baixo, ao fundo da falésia, onde o precipício terminava. Parecia absorvida pelos seus pensamentos, pois dava a sensação de nada ouvir ou ver à sua volta .
Qual espectro em que se transformou . . . Era mais um animal procurado por outros animais, que lhe davam caça . . . As armas eram outras . . . Para quê ? Só ela o sabia . . . e os outros, os que a seguiam . . . Entregava-se sempre a quem lhe pagasse . . . agora, melhor ou pior . . . Noutros tempos era preço fixo, talvez . . . Hoje, já nem preço podia fazer para se vender a si própria . . . Tinha perdido a completa noção do seu valor material . . . Não lhe interessava saber o que os outros pensavam àcerca dela . . . Era-lhe tudo indiferente . . . Tudo . . . Tudo . . .
Era pobre. Rica não gostava nem nunca o pudera ser. Era viciada em tudo excepto no jogo . . . A vida que sempre levara não lhe permitira esse vicio .
À medida que os seus passos iam pisando a relva do canteiro, cogitava .
Desta vez os outros, esses outros, seguiam-na sem que ela lhes ligasse. Lá dentro no seu cérebro tudo rodopiava. Hoje tudo era diferente .
Apresentava-se-lhe uma luta disforme. Era um monstro, que já não conseguia viver, mas vegetar. Julgo mesmo que lhe era impossível pensar na honra e no pudor ao mesmo tempo. Sentia necessidade de dinheiro para tentar viver . . . e da vida para lhe dar dinheiro, como se fosse pertença de um circulo vicioso ou viciado . . . Depois, quando não mais se pudesse enfrentar na vida, somente um outro e único caminho lhe restaria . . . o da morte . . .
E a mulher pensava com os braços cruzados sobre o peito disforme, acariciando os ombros e os olhos debruçados sobre o mar :
" . . . Que me interessa a mim agora saber quem sou ? Realmente, nunca pude saber quem era nem o que poderia ser . . . Ontem, vi-me num espelho, como se fosse a primeira vez em toda a minha vida . . . Começo a descobrir quem sou e o que sou . . . Estou descarnada . . . Só tenho ossos . . . Não tenho cor . . . Estou lívida . . . desumanizada . . . Raios . . . Não tenho mais alimento para dar a estes cães vadios, que me perseguem . . . que me buscam . . . que me devoram . . . A minha vida é necessária aos outros ? . . . Mas . . . eles querem-me . . . Continuam a querer-me ? . . . Eles alimentam-me para se alimentarem . . . São eles que me mantêm viva . . . por necessidade casual . . . São uma espécie de alcateia . . . terrível e ignóbil alcateia . . . de lobos imundos e famintos . . . Ao menos os verdadeiros lobos têm medo . . . têm honra . . . têm pudor . . . Estes, não . . . Quando não precisarem mais de mim, que me farão ? Não me darão mais dinheiro, certamente, porque já não precisam da minha carne . . . desta carne que os tem alimentado . . . Ficarei a um canto pensando na podridão da minha vida . . . Depois . . . Depois . . . saltarei quer queira quer não para o outro lado da barreira . . . Como ? . . . Como ? . . . "
E os seus olhos marejados de lágrimas, balançando sobre o mar, davam a impressão de estar a acordar de um sonho de uma vida, um sonho terrível, que parecia não ter fim .
E a mulher continuava a pensar, enquanto caminhava sem aparente sentido :
" . . . Como eu há muitas outras e essas outras, que há fazem a mesma coisa que eu . . . sustentam-se da mesma maneira e da mesma maneira vivem ou vegetam alimentando os lobos . . . mas ainda é tempo de voltar atrás . . . É sempre tempo . . . de ser diferente delas . . . de ser mais do que elas . . . de ser diferente de mim mesma . . . e mais do que elas conseguir o que nunca conseguiram alcançar . . . a LIBERTAÇÃO . . . Lá isso é . . . "
E a mulher regenerando-se, abeirou-se do precipício. E, olhando o céu, lançou-se no espaço aberto para o mar, naquele espaço onde, perdendo a vida, a alcançou finalmente .
Será um dos poucos casos onde morrer não é pecado ? . . . A vós deixo a continuação deste meu pensamento . . .
Lisboa, 1967
Cortado na integra pela Censura
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