OS TEDDY BOYS
Noite dentro, encostados ao balcão do Bar Lamas, ora com a " doce voz " característica da embriaguez ora com roncos pedintes da piedade por quem tem sede e a boca já sabendo a " papel de música ", uns tantos indivíduos, pertinazmente, procuravam nos bancos altos a sua direcção vertical .
Os bancos, mal almofadados pelo desgaste do tempo, serviam de prova à verticalidade de que o homem tanto se vangloria naqueles casos, mas que quase nunca consegue manter e muito menos demonstrar, por maior esforço que faça .
Que horas seriam ? Não me recordo bem, mas com toda a certeza o mostrador electrónico do meu relógio de pulso mostraria que a meia noite já passara havia muito .
Olhos esbugalhados nuns, noutros mongolóides, procuravam ver as mãos. que tão desajeitadamente deixavam fugir os copos meio cheios . . . ironia do destino . . . meio cheios de qualquer coisa, que já não eram capazes de distinguir .
Não sei se os narizes eram vermelhos ou tudo já seria vermelho, menos a sua consciência . . . Essa, decerto, já era branca de todo . . .
Madeixas desgrenhadas sobre caras disformes, vestuário totalmente desalinhado e desventurados da sorte --- os carecas, esses sim, têm sorte completa, mas nenhum desses havia por ali, pelo menos que se visse ---, esses indivíduos de ambos os sexos procuravam na embriaguez a resposta, que outros procuram olhando as ondas do mar ou dos rios, quando correndo através dos seus rápidos .
Como não há regra sem excepção, nem sempre a embriaguez é provocadora de maus pensamentos. Por vezes, até é óptima conselheira, quando leva o seu possuidor a dormir a sono solto --- casos havia em que isso já sucedia, pelos roncos " enternecedores ", que Ía ouvindo ---, transformando-os em bebés, que ao acordar jamais se conseguem lembrar da forma como entraram naquele sono --- mas que lhes dói a cabeça, lá isso dói --- .
. . . Cai um banco . . . Estala mais um copo no chão . . . Mais uma lata de cerveja é deitada para o caixote do lixo . . . Derrama-se o conteúdo de outro copo . . . Ouve-se um zurro ou um grito . . . Duas vozes pândegas, que quase não se ouvem, mas que se entendem perfeitamente . . . Em suma, o ruído característico da frente de um balcão repleto de gente, em situação igual à que vos estou a relatar naquele estilo futebolistico-apolitico e sensível ou mesmo quase apocalíptico de qualquer frequentador assíduo de barbearia, em horas amenas de Primavera apetecível, pela tardinha fora . E os fósforos que se gastam quando um daqueles pândegos quer acender um cigarro ? E, se o cigarro tem o filtro virado para fora, semi caído dos lábios secos de tanto álcool ? Para quem nunca viu, deverá tomar o cuidado necessário, pois ao acender-se o cigarro, o fiel proprietário faz um trejeitozinho agressivo, cuspindo-o por vezes a distância razoável por se haver queimado ou por o gosto do fumo absorvido não ser do seu agrado . . .
Se alguém já experimentou essa sensação, decerto consegue bem melhor aperceber-se do espectáculo .
A escuridão quase completa no interior do bar, salvo algumas pequenas luzes vermelhas ou pequeníssimos " néons " de cor azulada e rosa, formava o resto do ambiente a par de uma música de fundo muito suave e convidativa à meditação e ao sono .
Lá fora, na rua deserta até então, ouviu-se uma " moto " . . . e outra . . . e outra . . . e outra . . . , daquelas que mais parecem um carro sem capota do que o nome que lhes estou a dar. Aquelas bisarmas ouvem-se a grande distância num perfeito ribombar de trovões entrecortados pelo faiscar dos barulhentos escapes, que também iluminam quem de luz precise .
Para além do balcão do bar, existiam duas mesas pequenas a um canto com um total de quatro toscas cadeiras de madeira, num espaço inferior a seis metros quadrados. Nelas, três moças conversavam ruidosamente sobre qualquer assunto, como de costume . . . Eram clientes assíduas . . . E a conversa era sempre a mesma . . O " Teddy ", esse já estava completamente de pantanas . . . e a " Flausina ", que esperava ter de o aguentar sob o lençol da cama, suspirava ora angustiada ora aliviada, pois o " brutamontes " já não devia passar do " Hall " da casa onde moram ou até mesmo da porta de entrada . . . Já não seria a primeira vez que o deixava a dormir ao relento ou no tapete da sala .
A temperatura exterior fazia-se sentir abaixo de zero graus centigrados, mas dentro do bar o ambiente levava uma pessoa a sentir-se dentro de um palácio. Calor não faltava, sobejando mesmo, situação ideal para levar alguns à cama com uma boa e reforçada dose de gripe .
De gargantas afiadas outros tantos Teddies ou Sam fizeram a sua entrada triunfal dentro do bar .
À vista destes os que estavam dentro saíram enrodilhados no seu próprio estado e sentaram-se altivos sobre as " motos " azuis, vermelhas, douradas ou pretas com aros luzidios e brilhantes faróis, predispostos a encontrar o seu caminho para casa. Passando a mão pelo cabelo engordurado e amarelecido enterraram os barretes, que sempre os protege do frio. Pondo as suas luvas de pele colocaram em funcionamento aquelas poderosas máquinas --- fazem sempre um barulho ensurdecedor, como se estivessem a ensaiar os motores para grandes competições --- .
Zarparam sobre as rodas traseiras a velocidades incríveis e, ao alcançarem a primeira curva, descreveram-na em derrapagem controlada com a perfeição de equilibristas, que ninguém diria estarem em estado lastimoso de conservação, como efectivamente estavam .
Os " Teddies " não têm dezassete ou dezoito anos de idade. Longe disso. Têm mais de quarenta e na sua maioria são veteranos do Vietname .
Juventude atribulada caminhando sem destino para uma senilidade desequilibrada, onde não entra a razão de existir nem o belo sexo oposto nem mesmo as lembranças líricas, que povoam as mentes normais pelo menos entre os doze e os vinte e cinco anos de idade, seja em que país seja .
Ainda hoje a Argentina nos mostra bem esse romantismo através dos seus Tangos e Milongas, romantismo esse proveniente do meu querido Velho Mundo, fosse de Espanha, de Portugal ou de outro qualquer país Europeu com tradições marítimas .
Apesar de tudo, especialmente de certa dose de saudosismo latino, a vida aqui seguindo o seu rumo natural, estonteante e desordenado, não me seduz. O meu espírito de aventura tem outro sentido que não esse . . . Talvez uma procura constante de dar satisfação à minha ideia interior de Liberdade e não de subjugação à Vida Exterior e Materialista, contrariando de certa forma aquilo a que chamam o “Sonho Americano“, ou seja, o fácil enriquecimento .
De onde terão vindo aqueles de quem vos falo ? . . .
Da droga ? Da sodomia ? Da mentira ? Do álcool ? Da prostituição ? . . . De onde ? . . . Do Nada, a não ser NADA . . . Fortes olhares rancorosos, que parecem querer dizer : " Deixem-me morrer onde estou ou deixem-me viver onde não posso estar " .
Apagaram-se as luzes do bar. As despedidas e os " Take'r easy's " soltaram-se dos lábios dos semi sãos, enquanto os outros, baixando as cabeças como que envergonhados, pagaram as suas contas --- pagam quando pagam, e se não pagam a dinheiro pagam com as costas na cadeia durante algumas horas, até que o prejuízo seja resgatado por qualquer familiar ou amigalhaço mais prevenido --- e sumiram-se nas ruas escuras sob o barulho ensurdecedor das suas " motos " infernais. Toda a gente, quer queira quer não é posta na rua, pois o dono do bar tem mais que fazer .
O bar fechou como sempre à hora certa. O " Bartender" contou os míseros níqueis ou amarrotadas notas, que lhe foram parar à mão. Foi conferida a fita da caixa registadora e substituída por outra para a contabilidade estadual, numa evidente troca de dados económico-contabilisticos a fornecer ao controle estadual --- na Europa também se usa esse sistema, mas não sei se foi importado de um lado ou de outro --- no sentido de concretizar o mais rapidamente possível o tão famigerado “ Sonho Americano “ .
Sob o olhar atento, o " Bartender " encerrou à chave as duas portas fronteira e traseira do prédio do rés-do-chão e, alquebrado pelo extenuante final de dia, dirigiu-se a casa para descansar afim de recobrar forças para enfrentar o dia que se avizinhava .
Onde estão os outros, que saíram primeiro ? Dizei-lhes adeus, pois talvez seja a última vez que pondes a vista em cima deles .
Palavras, leva-as o vento e nunca se sabe se aqueles, de que hoje falámos, não serão levados pelo vento, para nunca mais regressarem à nossa convivência .
O resto, leva-o a Morte e nada fica, senão a recordação de ter obtido mais um pouco de experiência vivida na Vila de Naugatuck, no coração do Estado Norte Americano de Connecticut .
Naugatuck ( USA ), 1982
Sem comentários:
Enviar um comentário