O NAVEGADOR
Passaram-se dias e eu recostado numa cadeira da praia de Canoa Quebrada --- a vila hippie das duas ruas e 250 pousadas encavalitadas umas nas outras --- olhando as pequenas ondas, que baloiçavam sobre o mar azul claro do nordeste Brasileiro, no Estado do Ceará, ia pensando com a minha “ tea-shirt “, que tinha trazido do Recife, o que aquele mar tinha de novo para me mostrar … e eu não levava camisa com botões. Por isso …
A Norte viam-se as dunas de areia que antecipam a existência de um rio, o Jaguaripi, onde os mangais pejados de magnificas ostras ( “ CRASSOSTREA RIZOPHORAE “ --- Guilding – 1828 ) são a moldura permanente de uma pequena selva com alguns extremamente barulhentos saguins e papagaios, onde em tempos o Jaguar era rei e senhor e daí o seu nome ( Rio do Jaguar ). A sul a extensa areia lisa da praia e os morros avermelhados de óxido de ferro perdiam-se no horizonte .
Aqui e ali viam-se meias conchas descarnadas enfeitando a areia na zona molhada. Eram maioritariamente conchas de “ TELLINA PUNICEA “ ( Von Born – 1778 ) , de “ TELLINA LISTERI “ ( Röding – 1798 ) , de “ DONAX VARIABILIS “ ( Say – 1822 ) e de “ DONAX STRIATUS “ ( Linnaeus – 1767 ) a que os indígenas Tupis chamam vulgarmente “ Taioba “ .
Estava calmo o tempo, embora uma leve aragem provocada pelos permanentes ventos alísios, se fizesse sentir para apaziguamento do forte calor tropical, que aquecia os meus braços e as minhas pernas. Não fosse o meu cuidado em proteger essas partes do corpo com óleos protectores --- que no Brasil há muitos à base de banana e coco, de confecção caseira, mas que dão óptimos resultados --- e em poucos minutos estaria transformado numa lagosta cozida. O meu boné de pala com o Escudo Português --- faço questão em me identificar quanto ao meu país de origem, quando viajo para qualquer lugar fora de Portugal, nem que seja para a nossa vizinha Espanha --- faz sempre parte da minha indumentária, quando ando por aquelas paragens tropicais .
Ao meu lado uma pequena mesa de plástico branco era engalanada por um copo de plástico transparente publicitando a casa, uma cerveja bem gelada dentro de um recipiente de esferovite, que assim a mantinha, e uma travessa já só com meia dúzia de camarões panados à “ Milanesa “ cheios de palitos espetados e repastelados sobre uma fresquíssima cama de folhas de alface, rodelas de tomate, pimento verde e limão acompanhados de batata frita e um molho delicioso de maionese, que de tempos a tempos iam servindo de intervalo às minhas cogitações e ao sossego do meu apetite e da minha sede … e o aperitivo já tinha sido uma “ caipirinha “ bem servida com lima verde triturada e gelo … muito gelo …
É um costume que não se perde por aquelas paragens … uma ou duas “ caipirinhas “ antes do repasto … À terceira, quer se queira ou não … dorme-se muito bem. Não é preciso tomar comprimidos para dormir. É costume dizer-se em Curaçau, no meio da comunidade Madeirense aí existente, quando se convida alguém para tomar um trago de qualquer bebida : “ Vai um comprimidinho ? “ …
Lá longe duas ou três embarcações, tipo jangada, com uma vela latina desfraldada vinham na minha direcção ainda a grande distância da praia. Com dificuldade se via os mareantes, pescadores destemidos, para quem os tubarões e outros perigos não representam preocupações de maior. Desconhecem o medo … A sua vida é uma luta constante … Aventuram-se naquele mar só para apanhar meia dúzia mal contada de peixitos --- que os grandes eles não os apanham porque não têm material nem condições de segurança para o fazer ---, que mal dão para alimentar as suas famílias pobres e muitas vezes votadas ao ostracismo pelo seu destino madrasto. De tempos a tempos lá conseguem vender alguns dos que apanham para arrebanhar uns míseros cobres, a fim de puder auxiliar a família raramente pequena no seu sustento .
Depois das velas enroladas trazem o pequeno cabaz às costas com o que apanharam e dirigem-se a passo lento para casa --- choupanas de barro e colmo ou tipo palafitas em madeira --- acompanhados em geral por um dos filhos, que a partir dos 14 ou 15 anos ficam a fazer parte da companha. A pesada “ poita “ lá fica pendurada na zona de proa, que só se diferencia da ré, porque esta tem um leme tipo remo com uma pá mais larga e que lhes dá uma maior mobilidade nas suas andanças, enquanto a proa não tem nada disso, como é lógico. Só tem uma argola em ferro onde prendem o cabo da poita com um ou dois nós “ Lais de Guia “ duplos .
A meio das jangadas da praia de Canoa Quebrada vê-se invariavelmente um banco corrido situado no sentido proa-ré, em cujo centro é instalado o mastro, --- noutras zonas do nordeste brasileiro a situação do banco ou bancos é bem diferente, tal o caso das jangadas de Porto Galinhas em que usam dois ou só um banco transversal o sentido bombordo-estibordo ---, onde os pescadores só se sentam para descansar, pois pescam de pé com uma agilidade e um sentido de verticalidade, que faz inveja à maioria dos pescadores da nossa costa portuguesa .
Deste género de pescadores, que eu saiba, só se encontram também em S. Tomé e Príncipe, quando nas suas canoas a curricar andam à pesca do Andala ( um tipo de Espadarte, mais conhecido por Veleiro, que aí existe em grande quantidade ) com uma vara e dois cabos de nylon com cerca de 500 metros de comprimento presos às pontas da vara, tendo como isco um tufo de cabo de nylon grosso e desfiado ( o “ Blindado “ ) .
Os “ Andalas “ ficam presos nos blindados, quando neles investem com os seus longos bicos frontais e quanto mais se movem para se libertar, mais o tufo de nylon se enreda neles .
Sempre que vão à pesca do Andala levam essas canoas duas pessoas. Uma rema à ré enquanto a outra vai de pé virada para a proa segurando a vara à altura dos ombros … Qual equilibrista usando uma vara de equilíbrio sobre o cabo de aço de um circo … E não é a vida um Circo permanente ? … Há uns que mais se equilibram que outros e há os que vêm parar ao chão sem apelo nem agravo … e outros eventualmente ao mar. Hoje em dia já vão utilizando pequenos motores fora-de-borda de 5 cavalos, que o Governo de S. Tomé pôs à sua disposição a preços mais baixos … e ainda bem … embora muitas dessas canoas possa utilizar vela, o que fazem frequentemente .
E lá se seguiu mais um camarãozito com sumo de limão por cima e uma ou duas batatas fritas ponteadas daquele esplêndido molho de maionese .
Uma delícia que só pode ser comparada às ostras do mangue, que vendedores calcorreiam a praia trazendo-as em caixas térmicas ou em baldes apinhados de gelo e nos servem com muito limão por “ tuta-e-meia “. Eles próprios é que as abrem e lhes metem o limão e … depois … é só comer … só comer … mas cuidado … são afrodisíacas … Julgo que é por essa razão que as famílias dos pescadores nordestinos são tão grandes …
Não foi preciso ir catar dessas conchas, pois vieram parar à minha mão com a maior das facilidades .
“ Está interessado em ostras ? Quantas quer ? “ me perguntou a medo o vendedor, tendo-lhe respondido de pronto : “ Ponha de lado as conchas vazias e quando acabar de comer contam-se e dividem-se por dois. Logo saberemos quantas ostras comi, mas cuidado não parta as conchas, porque as quero para a minha colecção. Abra-as com o maior cuidado, por favor “. “ Tá bem, doutor. Fique descansado “, retorquiu-me o vendedor … e teve cuidado efectivamente e direito a uma gratificação complementar …
Cada ostra custava 50 cêntimos do Real, quando um Euro equivalia por alto a 3,80 Reais ( chegava-se a trocar a 4 Reais fora do mercado oficial de câmbios ) .
De certeza que dessa vez devo ter comido mais de 2 dúzias, tão saborosas eram. As conchas só as escolhi em casa … por falta de vista, claro … não sei se provocada pela cerveja tomada em dose equivalente à das ostras …
Mas há aqueles vendedores ( geralmente de tea-shirt ou camisas de tecido finíssimas com dizeres publicitários referindo uma empresa da região, uns calções e umas chanatas ou gáspeas de borracha tipo africanas ), que vendem rectângulos de queijo fresco assado e que nada tem a ver com marisco … mas que é bom, lá isso é, para rematar o petisco .
Existe efectivamente uma parceria entre a loja da praia, que fornece a alimentação aos veraneantes, e aqueles vendedores ambulantes, que se inter ajudam de todas as maneiras. Dá para todos e não vi queixumes da parte de ninguém. Há vendedores de tudo o que se possa imaginar, desde óculos a roupa interior de senhora, passando por alimentos, perfumes e óleos, vídeos e música, e quando lhes pedimos qualquer artigo que não têm, tentam de imediato procurar entre os outros colegas vendedores esse artigo de forma a contentar os clientes, mesmo que seja do mesmo tipo de artigos que eles vendem … Se isto não é inter ajuda, o que será ?
Levantei-me finalmente após um merecido descanso pelas muitas andanças naquelas paragens e fui dar mais um dos meus passeios para desanuviar o espírito e tirar-me da moleza em que estava a ficar prostrado. Aí fui eu mais uma vez praia fora à cata de material para a minha colecção tendo apanhado em pouco tempo muitas conchas com algum interesse, entre as quais as de alguns Gastrópodes tais como um “ CYMATIUM FEMORALE “ ( Linnaeus – 1758 e Perry – 1811 ), cujo habitat é normalmente na zona dos mangues junto à foz dos rios e não nas areias limpas do Ceará. Achei deveras curioso embora não tenha ficado de todo admirado .
Das peças mais difíceis de se apanhar completas devido à sua fragilidade contam-se as belíssimas “ SPIRULA PERONII “ ( Linnaeus – 1758 ). Delas apanhei um pequeno lote, que com todo o cuidado as embrulhei em guardanapos de papel que levava comigo não fossem elas aparecer na areia seca, que na molhada não se encontram .
Quando estava a dar por terminada a minha paciente caminhada de regresso e muito satisfeito com o lote de conchas que tinha apanhado, como diria Correia Garção : “ Eis senão quando … caso nunca visto … “, encontrei mesmo na rebentação um belo espécime de “ NAUTILUS POMPILIUS “ ( Linnaeus – 1758 ) a que dei o cognome de “ o Navegador “, mas que não se chamava Henrique, nem sequer pertencia à Ínclita Geração … .
Que delícia. Nunca esperei encontrar um e, muito menos, em perfeitas condições na zona de rebentação marinha com cerca de 12 cm . Já se encontrava morto, mas ainda com algumas partes moles, que os peixes ainda não tinham conseguido arrancar à concha .
Devia ter chegado havia pouco tempo àquelas paragens navegando ao sabor das correntes e daquele mar, que por vezes tão agreste se torna. Quantas milhas terá navegado ? Que perigos de vida terá enfrentado até perecer naquela praia de Canoa Quebrada ? Vamos lá saber …
A Vida nem sempre é ruim. Tem muitas coisas boas também. Basta um golpe de sorte e elas acontecem para nosso prazer, fazendo esquecer as agruras que dia a dia nos perseguem inexoravelmente … a nós como a todos os seres vivos como se o Karma de cada um de imutável Lei da Natureza se tratasse … e assim é …
Lisboa, 2006
Publicado nesse mesmo ano na revista de Malacologia " O BÚZIO "
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