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Nota Prévia :

Este Blog destina-se exclusivamente à divulgação de trabalhos escritos por mim para meu prazer e daqueles que eventualmente estivessem interessados na sua leitura.

Felizmente, foram muitos os que se me dirigiram a pedir que divulgasse alguns dos meus trabalhos, especialmente os que mais me marcaram ao longo da minha vida, daí ter feito uma escolha selectiva de entre todos eles, muitos ficando de fora, naturalmente .

Foi por esse motivo que surgiu este Blog .

Muitos desses trabalhos já haviam sido publicados em periódicos e revistas da especialidade e não só, muitos deles além fronteiras ( EUA e BRASIL ), e alguns chegaram mesmo a ser galardoados em Concursos de Contos e Poesias e diversos Jogos Florais .

À medida em que forem inseridos neste Blog, tentarei informar quais os já anteriormente publicados, onde e quando e se tiverem sido galardoados, quais os prémios que lhes foram atribuidos e quais as Organizações envolvidas .

Espero que a memória não me falhe e os meus apontamentos não estejam incompletos.

Ericeira, 20 de Janeiro de 2011

Carlos Jorge Ivo da Silva

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

TRIOLOGIA DO MAR E AS MEMÓRIAS DE UM CATADOR DE CONCHAS - III


O NAVEGADOR


Passaram-se dias e eu recostado numa cadeira da praia de Canoa Quebrada --- a vila hippie das duas ruas e 250 pousadas encavalitadas umas nas outras --- olhando as pequenas ondas, que baloiçavam sobre o mar azul claro do nordeste Brasileiro, no Estado do Ceará, ia pensando com a minha “ tea-shirt “, que tinha trazido do Recife, o que aquele mar tinha de novo para me mostrar … e eu não levava camisa com botões. Por isso …
  A Norte viam-se as dunas de areia que antecipam a existência de um rio, o Jaguaripi, onde os mangais pejados de magnificas ostras   ( “ CRASSOSTREA RIZOPHORAE “ --- Guilding – 1828 ) são a moldura permanente de uma pequena selva com alguns extremamente barulhentos saguins e papagaios, onde em tempos o Jaguar era rei e senhor e daí o seu nome ( Rio do Jaguar ). A sul a extensa areia lisa da praia e os morros avermelhados de óxido de ferro perdiam-se no horizonte .
Aqui e ali viam-se meias conchas descarnadas enfeitando a areia na zona molhada. Eram maioritariamente conchas de “ TELLINA PUNICEA “ ( Von Born – 1778 ) , de “ TELLINA LISTERI        ( Röding – 1798 ) , de “ DONAX VARIABILIS “ ( Say – 1822 ) e de “ DONAX STRIATUS “ ( Linnaeus – 1767 ) a que os indígenas Tupis chamam vulgarmente “ Taioba “  .    
Estava calmo o tempo, embora uma leve aragem provocada pelos permanentes ventos alísios, se fizesse sentir para apaziguamento do forte calor tropical, que aquecia os meus braços e as minhas pernas. Não fosse o meu cuidado em proteger essas partes do corpo com óleos protectores --- que no Brasil há muitos à base de banana e coco, de confecção caseira, mas que dão óptimos resultados --- e em poucos minutos estaria transformado numa lagosta cozida. O meu boné de pala com o Escudo Português --- faço questão em me identificar quanto ao meu país de origem, quando viajo para qualquer lugar fora de Portugal, nem que seja para a nossa vizinha Espanha  --- faz sempre parte da minha indumentária, quando ando por aquelas paragens tropicais .
Ao meu lado uma pequena mesa de plástico branco era engalanada por um copo de plástico transparente publicitando a casa, uma cerveja bem gelada dentro de um recipiente de esferovite, que assim a mantinha, e uma travessa já só com meia dúzia de camarões panados à “ Milanesa “ cheios de palitos espetados e repastelados sobre uma fresquíssima cama de folhas de alface, rodelas de tomate, pimento verde e limão acompanhados de batata frita e um molho delicioso de maionese, que de tempos a tempos iam servindo de intervalo às minhas cogitações e ao sossego do meu apetite e da minha sede … e o aperitivo já tinha sido uma “ caipirinha “ bem servida com lima verde triturada e gelo … muito gelo …
É um costume que não se perde por aquelas paragens … uma ou duas “ caipirinhas “ antes do repasto … À terceira, quer se queira ou não … dorme-se muito bem. Não é preciso tomar comprimidos para dormir. É costume dizer-se em Curaçau, no meio da comunidade Madeirense aí existente, quando se convida alguém para tomar um trago de qualquer bebida : “ Vai um comprimidinho ? “ …
Lá longe duas ou três embarcações, tipo jangada, com uma vela latina desfraldada vinham na minha direcção ainda a grande distância da praia. Com dificuldade se via os mareantes, pescadores destemidos, para quem os tubarões e outros perigos não representam preocupações de maior. Desconhecem o medo … A sua vida é uma luta constante … Aventuram-se naquele mar só para apanhar meia dúzia mal contada de peixitos --- que os grandes eles não os apanham porque não têm material nem condições de segurança para o fazer ---, que mal dão para alimentar as suas famílias pobres e muitas vezes votadas ao ostracismo pelo seu destino madrasto. De tempos a tempos lá conseguem vender alguns dos que apanham para arrebanhar uns míseros cobres, a fim de puder auxiliar a família raramente pequena no seu sustento .
Depois das velas enroladas trazem o pequeno cabaz às costas com o que apanharam e dirigem-se a passo lento para casa --- choupanas de barro e colmo ou tipo palafitas em madeira --- acompanhados em geral por um dos filhos, que a partir dos 14 ou 15 anos ficam a fazer parte da companha. A pesada “ poita “ lá fica pendurada na zona de proa, que só se diferencia da ré, porque esta tem um leme tipo remo com uma pá mais larga e que lhes dá uma maior mobilidade nas suas andanças, enquanto a proa não tem nada disso, como é lógico. Só tem uma argola em ferro onde prendem o cabo da poita com um ou dois nós “ Lais de Guia “ duplos .
A meio das jangadas da praia de Canoa Quebrada vê-se invariavelmente um banco corrido situado no sentido proa-ré, em cujo centro é instalado o mastro, --- noutras zonas do nordeste brasileiro a situação do banco ou bancos é bem diferente, tal o caso das jangadas de Porto Galinhas em que usam dois ou só um banco transversal o sentido  bombordo-estibordo ---, onde os pescadores só se sentam para descansar, pois pescam de pé com uma agilidade e um sentido de verticalidade, que faz inveja à maioria dos pescadores da nossa costa portuguesa .
Deste género de pescadores, que eu saiba, só se encontram também em S. Tomé e Príncipe, quando nas suas canoas a curricar andam à pesca do Andala ( um tipo de Espadarte, mais conhecido por Veleiro, que aí existe em grande quantidade ) com uma vara e dois cabos de nylon com cerca de 500 metros de comprimento presos às pontas da vara, tendo como isco um tufo de cabo de nylon grosso e desfiado ( o “ Blindado “ ) .
Os “ Andalas “ ficam presos nos blindados, quando neles investem com os seus longos bicos frontais e quanto mais se movem para se libertar, mais o tufo de nylon se enreda neles  .
Sempre que vão à pesca do Andala levam essas canoas duas pessoas. Uma rema à ré enquanto a outra vai de pé virada para a proa segurando a vara à altura dos ombros … Qual equilibrista usando uma vara de equilíbrio sobre o cabo de aço de um circo … E não é a vida um Circo permanente ? … Há uns que mais se equilibram que outros e há os que vêm parar ao chão sem apelo nem agravo … e outros eventualmente ao mar. Hoje em dia já vão utilizando pequenos motores fora-de-borda de 5 cavalos, que o Governo de S. Tomé pôs à sua disposição a preços mais baixos … e ainda bem … embora muitas dessas canoas possa utilizar vela, o que fazem frequentemente .
E lá se seguiu mais um camarãozito com sumo de limão por cima e uma ou duas batatas fritas ponteadas daquele esplêndido molho de maionese .
Uma delícia que só pode ser comparada às ostras do mangue, que vendedores calcorreiam a praia trazendo-as em caixas térmicas ou em baldes apinhados de gelo e nos servem com muito limão por      “ tuta-e-meia “. Eles próprios é que as abrem e lhes metem o limão e … depois … é só comer … só comer … mas cuidado … são afrodisíacas … Julgo que é por essa razão que as famílias dos pescadores nordestinos são tão grandes …
Não foi preciso ir catar dessas conchas, pois vieram parar à minha mão com a maior das facilidades .
  “ Está interessado em ostras ? Quantas quer ? “ me perguntou a medo o vendedor, tendo-lhe respondido de pronto : “ Ponha de lado as conchas vazias e quando acabar de comer contam-se e dividem-se por dois. Logo saberemos quantas ostras comi, mas cuidado não parta as conchas, porque as quero para a minha colecção. Abra-as com o maior cuidado, por favor “. “ Tá bem, doutor. Fique descansado “, retorquiu-me o vendedor … e teve cuidado efectivamente e direito a uma gratificação complementar …
Cada ostra custava 50 cêntimos do Real, quando um Euro equivalia por alto a 3,80 Reais ( chegava-se a trocar a 4 Reais fora do mercado oficial de câmbios ) .
De certeza que dessa vez devo ter comido mais de 2 dúzias, tão saborosas eram. As conchas só as escolhi em casa … por falta de vista, claro … não sei se provocada pela cerveja tomada em dose equivalente à das ostras …
Mas há aqueles vendedores ( geralmente de tea-shirt ou camisas de tecido finíssimas com dizeres publicitários referindo uma empresa da região, uns calções e umas chanatas ou gáspeas de borracha tipo africanas ), que vendem rectângulos de queijo fresco assado e que nada tem a ver com marisco … mas que é bom, lá isso é, para rematar o petisco .
Existe efectivamente uma parceria entre a loja da praia, que fornece a alimentação aos veraneantes, e aqueles vendedores ambulantes, que se inter ajudam de todas as maneiras. Dá para todos e não vi queixumes da parte de ninguém. Há vendedores de tudo o que se possa imaginar, desde óculos a roupa interior de senhora, passando por alimentos, perfumes e óleos, vídeos e música, e quando lhes pedimos qualquer artigo que não têm, tentam de imediato procurar entre os outros colegas vendedores esse artigo de forma a contentar os clientes, mesmo que seja do mesmo tipo de artigos que eles vendem … Se isto não é inter ajuda, o que será ?
Levantei-me finalmente após um merecido descanso pelas muitas andanças naquelas paragens e fui dar mais um dos meus passeios para desanuviar o espírito e tirar-me da moleza em que estava a ficar prostrado. Aí fui eu mais uma vez praia fora à cata de material para a minha colecção tendo apanhado em pouco tempo muitas conchas com algum interesse, entre as quais as de alguns Gastrópodes tais como um “ CYMATIUM FEMORALE “ ( Linnaeus – 1758 e Perry – 1811 ), cujo habitat é normalmente na zona dos mangues junto à foz dos rios e não nas areias limpas do Ceará. Achei deveras curioso embora não tenha ficado de todo admirado .
Das peças mais difíceis de se apanhar completas devido à sua fragilidade contam-se as belíssimas “ SPIRULA PERONII “ ( Linnaeus – 1758 ). Delas apanhei um pequeno lote, que com todo o cuidado as embrulhei em guardanapos de papel que levava comigo não fossem elas aparecer na areia seca, que na molhada não se encontram .
Quando estava a dar por terminada a minha paciente caminhada de regresso e muito satisfeito com o lote de conchas que tinha apanhado, como diria Correia Garção : “ Eis senão quando … caso nunca visto … “, encontrei mesmo na rebentação um belo espécime de      NAUTILUS POMPILIUS “ ( Linnaeus – 1758 ) a que dei o cognome de “ o Navegador “, mas que não se chamava Henrique, nem sequer pertencia à Ínclita Geração … .
Que delícia. Nunca esperei encontrar um e, muito menos, em perfeitas condições na zona de rebentação marinha com cerca de 12 cm . Já se encontrava morto, mas ainda com algumas partes moles, que os peixes ainda não tinham conseguido arrancar à concha .
Devia ter chegado havia pouco tempo àquelas paragens navegando ao sabor das correntes e daquele mar, que por vezes tão agreste se torna. Quantas milhas terá navegado ? Que perigos de vida terá enfrentado até perecer naquela praia de Canoa Quebrada ? Vamos lá saber …
A Vida nem sempre é ruim. Tem muitas coisas boas também. Basta um golpe de sorte e elas acontecem para nosso prazer, fazendo esquecer as agruras que dia a dia nos perseguem inexoravelmente … a nós como a todos os seres vivos como se o Karma de cada um de imutável Lei da Natureza se tratasse … e assim é …


Lisboa, 2006

Publicado nesse mesmo ano na revista de Malacologia " O BÚZIO "

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