O ARTISTA DA AREIA
Um … dois … três … Lá vem o mar outra vez … Seria assim que eu daria como letra à lindíssima canção “ Nascer outra vez “ do grupo “ Ritual Tejo “ …
Fiquei preocupado com a extensa faixa de areia seca a ficar cada vez mais pequena. As águas marinhas estavam a evoluir para a praia mar e as ondas sucediam-se espraiando pelo areal cada vez mais estreito e mais apinhado de gente que se vinha deliciar com o ar fresco e iodado da maresia da manhã .
Eram cerca das onze horas e fazia uma leve brisa cortada pela arriba alcantilada vinda de noroeste na praia de S. Pedro do Estoril --- Não era decerto a “ nortada do sul “ como se dizia antigamente no Bairro dos Pescadores, no norte da Ericeira, quando estava prestes a chover, porque os fortes ventos do noroeste rodavam para sudoeste e as nuvens carregadas substituíam o luminoso céu azul ---. A praia mar estava prevista nesse dia 30 de Junho de 2006 para as 11h15 com uma altura de onda de 1.2 sob a influência de um quarto crescente lunar, que dava às translúcidas águas verde azuladas uma mansidão natural apetecível a banhos e chapinhos da pequenada carregando atrás de si as pequenas imitações de pranchas de surf, que não sabem usar, mas para copiar os pais, que também as não sabem usar… É só uma questão de “ maneirismo “ e de moda, que se tem vindo a instalar nas nossas praias até aqui tão apetecíveis e que se estão a tornar num completo caos .
E porquê estava eu preocupado com a subida das águas ? Muito simples a justificação. Um veraneante tinha feito na areia duas belas peças de arte, dois magníficos quadros de seres humanos deitados ao sol, e seria uma lástima perdê-las tão de repente como se por artes mágicas de um imprevisível estalar de dedos assim acontecesse .
Essas peças de arte, segundo o seu autor me disse, enquanto se levantava da areia próxima e se me dirigia afavelmente, eram costume seu fazê-las enquanto mais abaixo a água não estava a seu gosto para dar “ umas braçadas “. Homem eloquente e bonacheirão com cerca de sessenta anos de idade bem vividos, lá me foi confidencializando as suas tristezas por haver pessoas que se estavam “ nas tintas “ para a sua arte e pisavam descaradamente as peças enquanto passavam. Uma questão de educação … mais do que cultura … Distracção … uma ova … Aliás, isso é frequente nesta nossa decadente sociedade contemporânea … em que filhos perdem o respeito pelos pais ou por pessoas mais velhas … Fruta podre do tempo que corre …
Na sequência da nossa conversa veio à baila naturalmente as conchas e o coleccionismo em geral. Era coleccionador de muitas coisas, mas não de conchas, ainda. A sua predilecção era os selos de “ PORTUGAL E COLÓNIAS “. Deles falámos durante logo tempo, pois é assunto também de meu interesse, por ter entre outras uma colecção de selos de todo o mundo, que ultrapassa em número uns bons milhares … embora a partir de 1960 tenham aparecido autocolantes em vez de selos, que aqueles eram burilados, havendo muitos com marcas-de-água sendo trabalhados artisticamente, o que não acontece hoje em dia … Era isso que dava à Filatelia o prazer de um verdadeiro coleccionador ( e faço aqui a diferença entre o “ Ajuntador “ e o “ Coleccionador “, pois hoje Coleccionadores há poucos, Ajuntadores há muitos ), especialmente a busca das diferenças pela imperfeição das impressões ou utilização de diversos papeis, quando eles escassearam por motivo das 2 guerras mundiais do século XX --- para exemplo basta lembrar-nos das tão variadas Emissões de “ CERES “, em Portugal e das Emissões Inglesas, Espanholas, Alemãs, Polacas e sul americanas do princípio do século passado --- ou mesmo da utilização de tintas diferentes, suscitando novas cores ( “ nouances “ naturais porque as misturas não eram feitas com as mesmas quantidades nem com as mesmas qualidades de tintas ) .
Falámos … Falámos … mas finalmente as conchas tomaram a dianteira sobre todas as outras colecções e lá tentei dar uma pincelada sobre o coleccionismo de conchas, que me pareceu interessar ao meu interlocutor, por ser para si coisa nova e divertida, dado o meu demonstrado e contagioso interesse .
Levou-nos a conversa a que o meu bom amigo, conversador perene, creio, me propusesse fazer consigo uma “ catagem “ pela praia a ver se ele aprendia um pouco mais do assunto. Não me fiz rogado. Primeiro, fomos às rochas situadas a noroeste, que já começavam a ficar descobertas com o início da baixa-mar, onde lhe falei na biodiversidade do microcosmos ali existente e mostrei-lhe depois de muitas outras coisas interessantes as Patellas, fazendo uma pequena descrição, bem superficial, é certo, das duas espécies que ali havia em maior quantidade ( a Rústica e a Ulyssiponensis ), não deixando de aflorar o problema das rádulas, que definem a espécie das Patellas e que neste momento a Universidade dos Açores, através do seu Departamento de Biologia ( com a magnifica equipa do Sr. DR. Sérgio Ávila ), tão interessada está em aprofundar o seu estudo ( http://www.uac.pt/~fosseis )
Ficou, pareceu-me, encantado --- e a conversa é como as cerejas, que quanto mais se come, mais se quer --- e o seu interesse demonstrado levou-me a mostrar-lhe um aldeamento de “ Siphonaria Pectinata “ existente na parte noroeste da praia a par dar patellas aí existentes. Falei-lhe de um outro aldeamento que havia a sudoeste, mas que as obras para “ melhoramento “ da praia ( tenho fortes dúvidas quanto a esse melhoramento ) ali efectuadas destruíram completamente, pois encontravam-se num grande rochedo que aí havia e que foi destruído completamente ( Apresentei na altura uma reclamação à Câmara Municipal de Cascais, que até hoje não obteve qualquer resposta, a não ser aquela que os insignes representantes do povo --- salvo seja --- dão para os seus botões : “ Estes ambientalistas de uma figa … “ ) .
Estava, então, o meu amigo boquiaberto, pois julgava tratar-se tudo de “ Lapas “ e que elas eram todas iguais, apesar de ter passado os olhos sobre elas centenas senão milhares de vezes ( como tantos outros que só conhecem Lapas, quando as vêem de pé para o ar num prato grelhadas e cobertas de um molho feito à base de azeite, limão, muitos coentros picadinhos, pimentão das Ilhas dos Açores e piripiri ou malagueta cortadinha aos pedacinhos ) … e veio à baila as Fisurellas e as Diodoras com os seus buraquinhos funcionais. Ficou extasiado com essas informações. O meu amigo não fazia nem de longe nem de perto a mínima ideia do que eram “ conchas “. Para ele “ búzios “ eram búzios e o resto eram “ conchas “. Essa é uma ideia generalizada na população, é certo, conforme tenho constatado centenas de vezes .
Voltamos à zona de areia e comecei a apanhar “ Pectens “ ( destes, muito poucos ) e as encantadoras “ Chlamys “. Foram-se juntando entretanto pessoas à nossa volta e muitas entraram na nossa conversa, fazendo perguntas, às quais muitas vezes ficava sem poder dar resposta, desculpando-me, devido aos meus fracos conhecimentos por não ser Biólogo ou muito menos parecido, já que sou um simples curioso, que tem o firme desejo de aprender --- Houve um que me perguntou qual era o peso atómico da matéria calcária que compõe a concha …e respondi-lhe com um pedido : “ Que não sabia e que quando ele soubesse, se me fazia o grande favor de me informar, pois que também estava interessado em saber “. Claro que nem o número de telefone me pediu… Há cada um … --- .
Aí mostrei-lhes algumas diferenças entre elas quanto às caneluras e às colorações … Ah, as multifacetadas colorações, as mais diversas ... e cada uma mais bela que a outra que se apanhou de seguida … Para ele --- e opinião de muitos dos presentes --- eram conchas partidas, porque lhes faltava uma parte da asa. Sorri naturalmente …e perguntei-lhes se não achavam estranho o facto de faltar em todas as conchas o mesmo lado da asa ? Seria que era coincidência isso acontecer a tantas conchas ao mesmo tempo ( e na minha mão havia pelo menos umas dez ) ? Essa pergunta abalou terrivelmente as suas convicções, para gáudio meu. Foi uma forma de me pagar dos maus tratos que estava a “ receber “ com as perguntas que me faziam sem eu poder dar respostas tão correctas quanto possível, pois não pode haver lugar a invenções nessas situações, embora o povo Português seja inventivo e desenrascado por natureza … e eu sou Português de gema e ainda mais por ser Saloio, natural da capital dos Saloios, Mafra, um pouco desenraizado, é certo, por viver em Lisboa desde os meus 17 anos de idade como muitos concidadãos meus, para onde vim estudar por não haver em Mafra onde seguir os meus estudos …
Mas … lá se seguiram mais umas explicações na medida dos meus conhecimentos sobre a sua morfologia interna, o seu habitat e a sua forma de locomoção, qual a concha superior e qual a inferior, nestas bem fácil de definir, etc … etc …
Alguns Nassarius também apareceram para minha alegria assim como muitas conchas juvenis e microconchas de cores variadas, ali em grande abundância. Lá vieram então à baila Linnaeus, Gmelin, Sowerby, Lamarck e tantos outros naturalistas e os diversos métodos de classificação e exemplos de muitas nomenclaturas latinas, que definem e associam as conchas …
Passamos umas boas horas na praia com um rol de gente de todas as idades e de ambos os sexos, agradável salvo raríssimas excepções --- de estupidez está o mundo cheio ---, que se foram juntando à nossa volta, como ficou dito, introduzindo-se sorrateira e alegremente na nossa conversa sem quase nos apercebermos. Divertimo-nos imenso com a situação a vê-los de gatas muito entretidos a “ catar “ conchinhas e a querer saber o que é que tinham apanhado .
Quando voltamos ao local onde estavam as nossas coisas, o mar já tinha feito os seus estragos e a par de algumas das nossas coisas, que se encontravam num nível superior da areia se encontrarem ou pouco salpicadas pelos borrifos de água salgada, as peças de arte tinham desaparecido quase por completo. Que tristeza para mim ver aquele espectáculo de arte todo destruído. O meu semblante transparecia fielmente os meus sentimentos de tristeza olhando a areia lavada pelo mar, nivelando-a quase por completo, quando o meu amigo perfeitamente consciente da situação na sua infinita complacência me disse num tom suave: “ Não se preocupe … Amanhã haverá mais … “, como que a dizer de si para si : “ Para o que não há remédio, remediado está “ ...
Foram elas, aquelas magnificas peças de arte, que com o seu possível e mais que certo desaparecimento deram lugar ao aparecimento de um novo Conchiologista, conforme vim a confirmar via telefone uns dias depois, quando me telefonou a pedir esclarecimentos e informações de forma a poder aumentar os seus conhecimentos sobre os mais diversos aspectos da Conchiologia e da Malacologia .
É bem certo que “ Nada se perde. Nada se cria. Tudo se transforma “ .
Como um extraordinário artista se transforma assim num coleccionador de conchas, que em tão poucos meses já ultrapassa a posse de cerca de um milhar de espécies diferentes. Senti mais uma vez que tinha feito algo de útil na vida … já que a transformação em si é também Arte e eu sou um fã incondicional de todos os meios correctos e fins artísticos . Enfim, sou um amante de Arte, na sua essência e um Conchiologista é um verdadeiro artista e se for Português … ainda melhor .
Lisboa, 2006
Publicado nesse mesmo ano na revista de Malacologia " O BÚZIO "
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