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Nota Prévia :

Este Blog destina-se exclusivamente à divulgação de trabalhos escritos por mim para meu prazer e daqueles que eventualmente estivessem interessados na sua leitura.

Felizmente, foram muitos os que se me dirigiram a pedir que divulgasse alguns dos meus trabalhos, especialmente os que mais me marcaram ao longo da minha vida, daí ter feito uma escolha selectiva de entre todos eles, muitos ficando de fora, naturalmente .

Foi por esse motivo que surgiu este Blog .

Muitos desses trabalhos já haviam sido publicados em periódicos e revistas da especialidade e não só, muitos deles além fronteiras ( EUA e BRASIL ), e alguns chegaram mesmo a ser galardoados em Concursos de Contos e Poesias e diversos Jogos Florais .

À medida em que forem inseridos neste Blog, tentarei informar quais os já anteriormente publicados, onde e quando e se tiverem sido galardoados, quais os prémios que lhes foram atribuidos e quais as Organizações envolvidas .

Espero que a memória não me falhe e os meus apontamentos não estejam incompletos.

Ericeira, 20 de Janeiro de 2011

Carlos Jorge Ivo da Silva

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O PAVÓCULO DA CAPOEIRA COBERTA DE PALHA AZUL

Do rol das histórias, que a minha avó me contava à beira da minha cama para me adormecer, quando eu era pequenino --- e não eram tão poucas como podereis à primeira vista imaginar ---, não me recordo de que constasse a que vos vou transmitir .
Quem m’a contou não me recordo, pois já foi há muitos anos, mas fixei-a e aqui vai de seguida para meu gáudio e vossa atenção, se houver da vossa parte um pouco de pachorra suficiente para me ouvir .
A história começa como todas as histórias, que nos contavam na nossa infância : “ Era uma vez … “
Era uma vez … uma capoeira situada lá muito longe no espaço e no tempo, coberta por um manancial de palhinha azul muito lisinha e brilhante, construída com muito esforço e canseiras ao longo de muitos e muitos séculos, mas ainda de pé .
Pintada quase toda de verde e castanho de muitos matizes era emoldurada por quatro bem enquadradas portas bem escancaradas, das quais duas eram pequenas sendo grandes as outras duas, encontrando-se cada uma delas virada para um dos pontos cardiais .
Uma das portas grandes e outra das pequenas, a do sul e a do oeste, estavam pintadas com o mesmo azul do telhado, embora a tinta fosse mesclada com um pouco de verde, enquanto as outras duas, a do norte e a do leste, se apresentassem revestidas de verde e castanho tal como o resto da pequena capoeira .
Não era uma capoeira muito espaçosa mas era bonita de se ver e muito bem arranjada, porque os seus habitogalináceos se preocuparam muito com isso até determinada época. Poderia chamar-se com toda a propriedade : “ uma capoeira ecológica “, devido à quantidade de água ali existente em picotas espalhadas por todos os lados .
Notava-se, porém, algo de muito curioso : Parecia que a capoeira pairava no éter, pois não se via nem se sentia mais nada em seu redor .
No seu interior reinava uma sensação de bem-estar e de ordem e todas as aves trabalhavam com a mais perfeita organização e na mais perfeita harmonia, pondo ovos aqui … pondo ovos ali … nos cestos que lhes estavam destinados havia muitos anos … comendo milho igualmente distribuído por todas e debicando pedrinhas de todas as cores e feitios, que muitas havia então por toda a capoeira .
Um belo dia, apareceu dentro da capoeira, sem se saber como nem de onde veio, um pequeno Pavóculo todo rechonchudo e bem engalanado de lindíssimas penas multicolores com a sua cauda em forma de leque toda emprumada .
Ah ! Já me esquecia de vos dizer que tipo de ave era essa. Um Pavóculo era uma ave raríssima naquela época, pese o facto de hoje se encontrar em grande quantidade dispersa pela maioria das capoeiras. Tratava-se de um tipo de pavão todo empenachado, que além de ostentar um bico sempre pronto a debicar, para ver não necessita mais do que um único olho, que se posiciona no alto da cabeça, a qual roda no seu condito occipital a trezentos e noventa graus .
Eu sei … Eu sei … A circunferência tem 360 graus … eu sei … mas o Pavóculo roda a cabeça para além da circunferência, não deixando nada para ver em ângulo morto. Além disso, a sua capacidade auditiva fica muito além de todas as restantes aves e, para além disso, tem a faculdade única de contar com outras aves menores, que lhe vão contando coisas … coisas … coisas …
A pouco e pouco o bom do nosso Pavóculo lá foi crescendo … crescendo … crescendo … auxiliado nas suas estonteantes pavoculices por uns pequenos galuchos, que apesar de quezilentos ali andavam com eira e com beira .
Como os galuchos tinham uma crista afilada e bicos próprios da sua espécie sempre davam jeito ao Pavóculo para abrir caminho entre os restantes habitantes da capoeira, que se afastavam baixando as cristas à sua passagem com medo de levar uma ou outra bicada .
Com o decorrer dos tempos o Pavóculo transformou-se pela sua raridade monocular em senhor absoluto da capoeira e os galuchos, todos empenachados com as penas das caudas a dar … a dar … e as cristas sempre sobranceiras e afiladas, tomaram posições de liderança, embora sempre muito contestados pelas outras aves de menor porte ou mais jovens, especialmente os filhotes das galinhas, que sempre cacarejavam à sua passagem com olhares reprovadores … mas não mais que isso … por falta de coragem .
Entretanto, as galinhas não ligavam a nada nem ao que se lhes dizia, por passarem a vida só a por ovos, a comer pedrinhas … agora já muito descoloridas ou a falar dos pintainhos, que … não tinham culpa nenhuma do alheamento das mães e de muitos pais para os problemas principais existentes dentro da capoeira .
Outras aves havia, porém, que ainda tentavam respingar, mas através de uma ou outra bicada que levavam, ficavam serenamente sossegadinhos nos seus predestinados cantos. Havia até quem cacarejasse que “ um galinheiro é sempre sereno … “
Os galinhos mais jovens entretinham-se em lutas de galinhos próprias da sua idade, que não levavam a nada, pois delas só saiam com algumas penas a menos e umas bicadas a mais .
Porém, os galuchos altivamente enfatuados, próprio da sua estirpe, guardavam para si as áreas mais ricas da capoeira, onde o milho se amontoava, e aí enchiam o papo sob o olhar mais ou menos distraído dos outros habitogalináceos … e debicavam o milho … e debicavam … e debicavam … e enchiam o papo de toda a maneira e feitio …, enquanto as outras aves comiam as reles pedrinhas, que ainda achavam à sua beira, pois só os galuchos tinham “ auto-autorização “ de passear por onde queriam para comer fosse o que fosse que se lhes deparasse à pata .
Periodicamente era distribuído um grão de milho --- e um só --- a cada ave, contrastando com os imensos grãos, que iam sendo delapidados todos os dias e todas as noites pelos galuchos organizadores dos muitos e bem variados festins, que se davam em certas zonas da capoeira só para eles reservados, sob o olhar anuidor do Pavóculo .
A certa altura surgiu um édito, não sei de onde nem por quem promulgado, embora se adivinhe, que dizia :
É condição essencial para pertencer ao galinheiro, que todas as aves vão aguentando. Quando não puderem mais perderão de imediato a sua cidadania e serão postas fora da capoeira ou colocadas a um canto só a água sem sequer ter direito a pedrinha --- milho … nem pensar ---, e se o seu crime for considerado hediondo, as suas penas ser-lhes-ão arrancadas uma a uma na quantidade dos dias de punição deliberados “ .
O medo instalou-se então dentro da capoeira e as aves passaram a desconfiar umas das outras, deixando assim de cacarejar, pois o que cacarejassem podia chegar aos ouvidos do Pavóculo e perderiam com toda a certeza a única e salutar oportunidade de comer as míseras pedrinhas, que ainda ali havia para seu sustento, porque o milho … esse, diziam os galuchos, já não dava para todos os habitogalináceos e havia que fazer poupanças-reforma ou outra coisa parecida .
Com o decorrer dos tempos os galuchos começaram, no entanto, a temer os outros galináceos, pois alguns, não receando perder a sua “ privilegiada “ refeição diária, enveredavam de vez em quando por cantar um pouco mais alto, e àqueles ia aumentando o seu medo de perder as suas posições junto aos montinhos de milho, que infelizmente já não era muito, por o terem debicado … debicado … cada vez mais … e mais …
Os cacarejos aumentavam dia após dia … mês após mês … ano após ano … e iam aumentando … aumentando … como que a dizer : “ … Capoeira onde não há milho todos cacarejam sem razão e em chorrilho … “ … mas já quase ninguém se entendia --- só umas quantas aves … e bem demais … --- .
Então, meus amigos, provocada pela força impetuosa dos galinhos, própria da idade sob o olhar reprovador das galinhas, que cacarejavam sem entender o que cacarejavam : “ … Assim é que está bem … “, “ … Ora essa ! Para quê mudar ? É tudo a mesma pasmaceira … “, “ … A politica não dá comer a ninguém … “, “ … Vêm para cá outros galuchos e é o mesmo … “, “ … Coitados, não sabem o que os espera … Vão ficar todos depenadinhos … “, etc … etc … etc …
Mas … os galinhos levaram a sua avante e houve uma assembleia geral dentro da capoeira sob o olhar atento do Pavóculo, que lá ia mexendo os cordelinhos conforme a necessidade da ocasião e estabeleceu-se uma nova organização, que se passou a chamar “ galinodemocracia “, composta de representantes de todos os galináceos --- de uns mais do que de outros --- , que nem por isso saíram de onde estavam a pôr os seus ovos com medo dos empenachados galuchos, deixando que a maioria dos galinhos eleitos falassem por si mesmos e não por quem os elegeu, criando-se até um partido único, que se autodenominou “ Partido Minórico “ .
Contudo, o nosso Pavóculo continuava a passear-se pela capoeira, ostensivamente alheio a tudo o que o rodeava, debicando aqui e ali sem nunca ser incomodado pelos agora imensos galuchos recém-eleitos, que lhe davam a importância que ele lhes exigia, convencido de que tinha em si toda a importância daquele outro espaço. Nem sequer pensava que a importância de uma ave é aquela que as outras aves lhe atribuem. Se não lhe atribuíssem nenhuma, deixaria de ser importante, naturalmente .
Mas o Pavóculo continuava convencido da sua real majestade e os galuchos da sua loquaz fidalguia .
Por aqui e por ali o bom do Pavóculo lançava sub-repticiamente uns galuchos contra os outros distribuindo benesses a uns e retirando-as a outros, jogando com a sua atrasadice mental, e assim lá ia reinando dentro da capoeira convencido de que era o salvador de tudo e de todos e que, pela sua importância, estava acima de todos e nenhuma outra ave lhe tiraria o lugar que, por ser a única ave com um só olho, havia alcançado por direito e natureza próprias .
Um dia, quando o Pavóculo e toda a sua corte de galuchos e de alguns galinhos candidatos a galuchos pensavam estar no melhor da festa, discursando em assembleias “ socioecono-micoveterinoeducativoculturais “ previamente preparadas para o efeito, só para apresentar os seus bicos pseudo democráticos, sob o mais infalível lema “ VERBA, NON RES “ --- ou seja “ PALAVRAS, NÃO ACTOS “ --- , entrou em cena um representante do dono da capoeira todo bem vestido de vermelho e de azul cheio de estrelinhas, cometas, meteoros e demais nebulosas, com cartola e tudo, ou só de vermelho, tanto importa, com um facalhão enorme ou uma avantajada foice … Já não me recordo bem …
O que foi certo é que sem mais delongas, o delegado do dono da capoeira, mesmo à frente de todos os galináceos, cortou a cabeça a sua real majestade, o Pavóculo, a todos os galuchos dirigentes do Partido Minórico e mesmo a alguns dos galinhos, que alinhavam nos festins, acabando com aquele estado deplorável a que as coisas haviam chegado dentro da desorganizada capoeira .
Vejam bem qual era a situação a que se havia chegado dentro da Capoeira : Havia galinhos, que até davam parte da pequena refeição de milho, que tinham conseguido angariar à custa de muitos pedidos e muitas subserviências aos galuchos, não só para poderem estar mais perto dos parcos montinhos de milho, mas também para poderem cantar em dias de festa um pouco mais alto, enquanto as galinhas cacarejavam umas com as outras por tudo e por nada … e a torto e a direito … num perfeito desatino, organizando desmesurados bebícios a favor dos galináceos mais desfavorecidos --- o curioso da questão é que para todas elas também já só havia água, fazendo-se filinhas de galinhas à beira dos bebedouros quase vazios a pedirem a quem não viam nem ouviam nem se queria ouvir, que lhes atirasse pedrinhas para comer .
Era em boa verdade uma completa desorganização perfeitamente organizada, convenhamos. Nada melhor para tapar as vistas à incompetência que manter a desorganização completa como sistema de vivência .
No lugar do Pavóculo degolado foi então colocado um outro Pavoculozinho pequenino, mas Pavóculo também, porque só tinha um olho, a contento de todos os “ Minóricos “ habitogalináceos da capoeira, que ainda restavam, sob a passividade dos restantes e de entre os galinhos lá cresceram alguns, que se transformaram rapidamente em galuchos, passando a fazer parte da corte do novo Pavóculo, que então determinou a mudança de nome do antigo Partido para “ Partido Democrático Minórico “ .
Foram, entretanto, colocados pelo delegado do dono da Capoeira novos montinhos de milho por toda a parte e pedrinhas … muitas pedrinhas de várias cores …
Enfim, passado pouco tempo, todos os habitogalináceos voltaram a esquecer-se de que aquela Capoeira tinha um dono, quisessem ou não, pensando ter voltado a viver na maior das felicidades … sob o olhar atento do novo Pavóculo, que queria como o anterior transformar-se em dono da Capoeira …
E, assim, termina a história do Pavóculo e da Capoeira coberta de palha azul, até um dia …
Ah ! … Lá me ia eu esquecendo de vos dizer que o novo Pavóculo mandou colocar televisões … muitas televisões … para que todos os galináceos sem excepção pudessem ouvir o “ Viti…galináceo “ no “ Vamos dormir … Vamos dormir… “, como se todas as aves não continuassem eternamente a dormir dentro do galinheiro …

Lisboa, 1995

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